Guilherme Araújo

por Lúcio Ribeiro
Trip #216

Ele levou o Brasil à Homeless World Cup, torneio de futebol dos socialmente excluídos

A Homeless World Cup reuniu 72 seleções nacionais no México, todas compostas de pessoas excluídas socialmente. O Brasil voltou com um honroso terceiro lugar. À frente do projeto brasileiro está Guilherme Araújo, presidente da associação Futebol Social

 

Quando o Brasil conseguiu o empate heroico contra o Chile na Copa do Mundo do México, um casebre na favela da Rocinha quase veio abaixo. A galera apinhada tirou o olho da tela que transmitia a dramática semifinal ao vivo para pular junto de alegria, e muitos choraram de orgulho dos heróis que vestiam a camisa da seleção. O empate saiu dos pés de um garoto brasileiro carente que não tem um lar para morar, enfrentando um time de chilenos de iguais condições de fragilidade social. A copa do mundo foi a Homeless World Cup, mês passado, no México, e foi toda transmitida por streaming – vídeo pela internet. O torneio social com cara de esportivo é realizado todo ano, está em sua décima edição, tem mais três programados e já foi no Brasil, em 2010, caso você não saiba. Porque eu não sabia.

O futebol, nessa história, é a ponta visível de um iceberg humanitariamente feio, cuja base a ser observada e “atacada” é formada por pessoas que têm moradia precária (quando as têm), órfãos, usuários de drogas, ex-detentos e outras pessoas em situação de fragilidade social. A ideia não é formar novos atletas, e, sim, transformar seres de vida difícil em cidadãos. O “gol” é outro. Mas, antes de essa bola rolar em forma de campeonato mundial, é preciso saber quem são os donos dela. E, no caso brasileiro, a bola pertence à ONG paulistana Futebol Social, fundada e presidida pelo mineiro Guilherme Araújo.

A Futebol Social foi criada a partir da revista Ocas, jornalismo comunitário que visa a inclusão de pessoas que vivem em moradia precária (rua, albergue). Editada por jornalistas, trata de cultura e sociedade e arregimenta indivíduos maiores de 18 anos na chamada “situação de rua” para trabalhar como vendedores. Eles ficam com parte do dinheiro arrecadado (outra parte vai para o financiamento da próxima edição) e ganham suporte esportivo e até psicológico.

A brasileira Ocas tem dez anos e é inspirada na revista britânica The Big Issue, que existe há 20 anos, tem similares em muitos países do mundo, é lida por 670 mil pessoas e também se baseia na venda da revista na rua por desabrigados, ajudando-os, assim, a ter um trabalho legítimo e aprender a lidar com o dinheiro – de uma forma muito diferente de mendigar.

 

“É de emocionar ver os meninos perfilados, cantando o Hino Nacional, todos honrados”

 

Foi num encontro anual de fazedores de revistas que surgiu a ideia do campeonato mundial. “A discussão era como reunir os beneficiários das ações de vender revista. A gente estava lá para discutir a vida dos outros, enquanto esses ‘outros’ estavam longe, nas ruas, vendendo revistas”, lembra o mineiro Araújo, 33 anos. Formado em administração de empresas pela GV, o rapaz se divide entre o terno e gravata, em uma consultoria empresarial em que o dinheiro circula, e o jeans e camiseta, na articulação de ações que conectam jovens carentes, onde dinheiro nennhum circula.

“O que faríamos para envolver realmente quem precisava ser envolvido? Colocar essas pessoas numa sala com tradução não daria certo. Fazer o que, então? Aí, por ideia de representantes da The Big Issue da África do Sul, Escócia e Áustria, fanáticos por futebol, veio a ‘solução universal’: fazer uma copa do mundo com times de vendedores de revista.”

A conversa foi em 2000. Em 2003, a Homeless World Cup era organizada como um campeonato piloto, na Áustria, com seleções masculinas e femininas de 17 países.

Tabela com a parede
Em outubro último a equipe brasileira, levada pela Futebol Social, chegou ao México para a décima edição do torneio. Foi a mais bem estruturada, com 72 seleções nacionais, e teve até chancela da UEFA (entidade que rege o futebol europeu) e patrocínio da Telmex, grupo de telefonia mexicano do empresário Carlos Slim, homem mais rico do mundo segundo a lista da revista Forbes – quem bancou a ida dos nossos atletas, contudo, foi a Eletrobras, estatal de energia elétrica.

Fomos ao México com dois times, masculino e feminino, com oito jogadores cada um (o futebol é tipo de rua: um goleiro e três na linha, e vale tabelar com a parede). Os convocados preenchiam requisitos da Futebol Social, entre eles ter entre 16 e 20 anos, idade considerada boa para a formação de líderes de comunidades.

 

“Os jogadores sabem que não vamos formar nenhum atleta. Estamos ali para formar cidadãos”

 

A montagem do time tinha ainda que respeitar um critério geográfico: no máximo três jogadores por região e dois por projeto/entidade. A Futebol Social tem parceria com entidades de assistência no Rio, em São Paulo (capital, baixada, interior), em Minas Gerais, no Distrito Federal (Brasília e cidades-satélites) e em Santarém. Fora do período da Homeless World Cup, a ONG se dedica a realizar torneios nacionais em diversas cidades brasileiras em conjunto com outras ações comunitárias.

Orgulho da camisa
A comemoração do começo do texto justifica-se: o Brasil perdia por 3 x 0 e foi buscar o empate. No finalzinho, ainda mandou uma bola na trave. O jogo acabou indo para os pênaltis, com vitória chilena – depois, o Chile acabou sendo campeão do torneio. Na delegação brasileira, tinha dois jogadores da Rocinha, que receberam mensagens por celular dos amigos do morro logo após o jogo, dizendo que eles já eram campeões por estarem lá e que haviam “representado”.

E representaram mesmo. Embora estejam numa condição longe da dos atletas milionários que vestem a camisa da seleção brasileira “real” numa Copa do Mundo, os meninos atraem a atenção por serem do país do futebol e, por incrível que pareça, são cobrados como tal. E, sim, demonstraram orgulho de vestir a camisa, mesmo que, na hora em que a cortina do futebol cai, sobre para eles, além daquela experiência especialíssima e única, a volta à realidade dura.

O que deve ser uma transição nada fácil também para as outras seleções da Homeless World Cup. O time do Haiti era formado por carentes que sobreviveram ao terremoto de 2010; todos os atletas da África do Sul vivem em contêineres; no de Portugal há apenas ex-detentos; a seleção da Áustria não tinha necessariamente austríacos e, sim, refugiados afegãos acolhidos pelo país europeu; a Holanda levou ao México um time constituído por dependentes químicos, assim como a Rússia; e o time do Canadá era formado por índios despossuídos de suas terras.

Campeões em casa
“É de emocionar ver os meninos perfilados, cantando o hino com vontade, todos honrados”, diz Pupo Fernandes, técnico responsável por preparar os rapazes, além de organizar torneios regionais onde surgem os candidatos à seleção. Pupo, 38 anos, deu aulas de futebol na Coreia do Sul e foi convidado pelo amigo Guilherme Araújo para integrar a Futebol Social quando voltou ao Brasil. “Os meninos participam de muitas palestras para saber o que vão encontrar desde a hora em que sobem no avião até a volta à vida difícil deles. Há o deslumbre, eles dão autógrafos, tiram fotos com torcidas e outros jogadores”, fala Pupo.

Em geral, depois que voltam para casa, os jovens seguem a vida normal, mas impactados positivamente pela experiência. Trabalham ou passam a procurar trabalho, estudam e também buscam viver do futebol. Há bons exemplos de vidas mudadas para melhor. Duas meninas que jogaram copas da Homeless estão nos EUA graças a outro projeto e fazem faculdade em intercâmbio com universidades de lá (também jogando bola, claro). Edson, da seleção de 2009, joga profissionalmente futsal no Brasil. Nicole, nossa goleira em 2011, está na seleção brasileira sub-20. Michele, do time de 2007, fez parte do time feminino do Flamengo e do Palmeiras e hoje está na Alemanha.

Com muita dificuldade, o Brasil foi sede da copa em 2010. Mesmo tendo participado de todas as edições desde 2003, foi a primeira vez que o país foi campeão, tanto masculino quanto feminino. E o organizador da Futebol Social pôde atrair uma atenção maior para a causa. Teve até jogadores de Corinthians e Flamengo como embaixadores da seleção, e algumas empresas apoiaram o evento e mostraram interesse em ajudar novamente.

O fotógrafo Antônio Brasiliano, que nos serviu com imagens da Homeless World Cup, é editor de imagens da revista Ocas e registrou em fotos e vídeos os últimos mundiais dos homeless, material que está sendo preparado para virar um documentário em 2013, quando voltar do próximo mundial, que acontecerá na Polônia. O filme terá, sim, o futebol como pano de fundo, mas na essência trata dos bastidores de outro tipo de jogo, em que a grande maioria já nasce perdendo e é muito mais difícil virar.

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