Eram 20h30min no Refúgio Tejos (5.830m). O dia ainda estava claro. Foi quando entraram dois indivíduos com as caras mais assustadas pela porta do abrigo. Os rostos estavam pálidos e as roupas cobertas de gelo. Estavam voltando do cume. Os dois estavam exaustos, mas conseguiram nos contar as dificuldades da montanha. Muita nave fofa e muito vento frio. Levaram 10h pra fazer o cume. Eram montanhistas noruegueses experientes com passagem até pelo Himalaya. Como eu e Márcio, eles também tinham feito o Aconcágua poucos dias antes. Porém com apenas 6h no dia do cume. Eu havia feito em 11h e o Márcio em 13h. Nós, brasileiros, nos entreolhamos e pensamos: vai ser foda.
A escalada do Ojos del Salado teve este tom em todos os momentos. Como sinais de aviso para quem estava achando que a escalada seria tranqüila. Ou até possível. Quando encontramos o outro grupo em Mendoza, já recebemos o primeiro. A escalada deles no Cerro Plata foi confusa e o grupo estava meio rachado. Nunca eu e Marcio imaginaríamos isso. Por outro lado, eu e ele estávamos bem tranqüilos e confiantes. A escalada do Aconcágua havia nos deixado mais seguros dos nossos planos e mais unidos do que nunca. Teoricamente, o Aconcágua havia sido nosso objetivo mais difícil.
Outra notícia era que mais um amigo nosso de BH tinha se unido ao grupo. Era o Pedrinho. Escalador forte e especialista em técnicas verticais. Então o time para o Ojos estava formado por oito pessoas: eu, Marcio, Maduro, Maguinho, Marcelo, Pedrinho, Acácia e Andrezão.
A ida pra Santiago já foi uma prova de que o time não estava alinhado. Uns foram domingo, outros na segunda de manha, outros na segunda à tarde. Eu, Marcio e Maguinho fomos segunda à noite, conforme tínhamos combinado no dia anterior. Mas todos chegaram a Santiago bem e ficamos no mesmo hotel, no centro da cidade.
Resolvemos ir para Copiapó no dia 16 de dia. Chegamos às 22h e só conseguimos uma pensão bem simples pra ficar. Jantamos num bom restaurante próximo e fomos logo dormir. O dia seguinte seria cheio e queríamos estar no deserto até o final do dia. Mas quase não foi possível. Foi difícil achar as duas pick-ups 4×4 para alugar. Mais tempo para as permissões para escalar na agência. E, finalmente, as compras demoraram muito mais do que esperávamos. Saímos de Copiapó às 18h.
Além dos carros serem 4×4, levamos em cada um dois estepes, galão extra de combustível (não existem postos no deserto) e correntes para colocar nas rodas em caso de ter muita neve. Outra coisa que não pode faltar é água. Tivemos que levar toda a água que iríamos consumir.
Tivemos problemas para passar na aduana chilena por causa do horário (21h). Lá fechava às 19h. Mas com jeitinho e uma boa conversa, nos liberaram. As 23h chegamos ao abrigo Cláudio Lucero (4.530m). Estar previamente aclimatado era fundamental para essa viagem, pois saímos de 500m de altitude e em 5h, chegamos a 4.500m.
No abrigo havia dois americanos e um guia chileno. A construção era grande e confortável. O plano era ficar por lá duas noites. O outro grupo não estava totalmente aclimatado e precisava desse tempo. Eu e Márcio não precisávamos mais aclimatar, mas resolvemos usar um dia a mais de nosso cronograma para esperar o pessoal. Ter três dias de contingência no plano ajudou muito nessa hora. Tínhamos a tranqüilidade de absorver imprevistos como este.
Dia seguinte ficamos tomando sol na varanda e a tarde nós fomos conhecer a Laguna Verde. E ela é linda. Cercada de vulcões por todos os lados. Além disso, brota água quente em suas margens. Existem duas pequenas piscinas para quem quer curtir um banho. Lá fica também mais um abrigo onde sempre tem um guarda-parque. Na Laguna os visitantes têm que acampar. O abrigo possui todos os equipamentos médicos para o caso de alguém passar mal. Inclusive uma câmara hiperbárica. Só falta um detalhe. Não tem médico.
É interessante mencionar que a infra-estrutura para escalar os vulcões da região tem quatro abrigos, todos com camas ou área para camping, banheiros (sem banho, é claro!) e área para cozinhar e comer protegidos do tempo (ou era no próprio abrigo ou em barracas grandes).
Na volta da laguna alguns do grupo subiram um morro em frente até uns 5mil metros para aclimatar. Depois voltamos para o abrigo. No dia seguinte acordamos sem pressa para nos preparar para subir para o Abrigo Atacama (5.300m). Seria o ponto final para os carros. Pedrinho e Acácia estavam se sentindo mal. Mas no caso do Pedrinho parecia ser apenas uma dor nas costas e talvez uma gripe.
Almoçamos e subimos. Foram 24 km de estrada muito ruim onde foi realmente necessário usar o 4×4 dos carros. Chegando ao abrigo, armamos nossas barracas e colocamos nossa comida numa das barracas cozinha. Havia no acampamento dois grupos de italianos e um casal de americanos. Os americanos ainda iriam subir. Os italianos já haviam tentado o cume sem sucesso. Reclamaram muito da quantidade de neve na montanha. E do vento. O guarda-parque que estava no local aproveitou e disse que nenhum grupo havia conseguido chegar ao cume desde a última nevasca na segunda semana de janeiro. Mais uma notícia “animadora”.
Pedrinho se sentia cada vez pior. Reclamava da dor nas costas e da gripe. Até então ninguém tinha ligado esses problemas a uma possibilidade de mal da montanha. Mas quando ele saiu da cozinha pra vomitar, a minha ficha caiu. Tinha alguma coisa muito errada e resolvemos procurar ajuda para medir a oxigenação dele. Por sorte os italianos estavam com um oxímetro e um médico na equipe. Ficamos impressionados com o resultado: 56.
De toda a nossa falta de experiência em alta montanha, essa foi a pior. Com essa medida, Pedrinho não passaria daquela noite. Teria que descer imediatamente. Eu e Marcelo o levamos para o Refúgio da Laguna Verde (4.200m) para ele se recuperar. Lá teria a assistência necessária. Mas na correria, ele esqueceu de pegar os documentos e com isso não pode pegar uma carona pra voltar a Copiapó no mesmo dia. Deixamos o Pedrinho lá aos cuidados do pessoal do parque e voltamos para a montanha.
Eu já estava dormindo às 23h quando o Maguinho me chamou do lado de fora da barraca. O guarda-parque veio nos avisar que o Pedrinho piorou e teria que descer imediatamente. Quando cheguei na roda que estava decidindo o que faríamos, Maduro já estava gritando que iria descer. Não precisei de 5 segundos pra concluir que iria perder dois amigos se ele fosse levar o Pedrinho sozinho devido ao seu péssimo senso de orientação. Os carros estavam com o combustível no limite. Não poderia haver erros no caminho. Eu sabia o caminho e ponderei que já estava aclimatado. A descida não iria me atrapalhar muito. Só perderia a noite de sono.
Discuti a estratégia com o Márcio. Eu iria resgatar o Pedrinho e ele faria o porteio para Tejos por nós. Na hora de sair, Andrezão resolveu ir também. Quando chegamos à Laguna à meia-noite, Pedrinho estava péssimo. Era mesmo preocupante. O colocamos no carro e partimos. Fomos orientados a passar por fora da aduana chilena, no meio das casas dos Carabineiros (polícia chilena). Se alguém aparecesse, era para parar. Se não, eles seriam comunicados pelo radio de manhã. Passamos devagar e como ninguém apareceu, passamos sem problemas.
A bruxa tava solta. Depois de 3h de viagem eu e Andrezão começamos a ficar enjoados. O jantar ainda estava no estomago e eu tinha bebido muita água na viagem. Parei uma hora e vomitei só a água. Melhorei. Andrezão resolveu com um Plasil.
Chegamos a Copiapó às 4h da manhã e não achamos o hospital. De qualquer forma, Pedrinho havia melhorado muito. Era outra pessoa. Então resolvemos ir para um hotel dormir. Depois de muita procura, achamos um bem caro. Como não tinha outra opção, ficamos lá mesmo. O pior é que quem sonhava com um banho (todo mundo) ficou frustrado. Tinha um aviso de todo tamanho no balcão do hotel dizendo que não haveria água no dia seguinte devido à manutenção das caixas d’água. É mole?
Dormimos umas 3h e levamos o Pedrinho no hospital. As radiografias do pulmão comprovaram a suspeita da dor nas costas. Tinha tanta água em seus pulmões que eles estavam pressionando a coluna. Que loucura. Mas ele estava cada vez melhor e precisaria de poucos dias pra ficar recuperado. Mas não o suficiente para ele voltar pra montanha. Ele não teria outra opção a não ser nos esperar ou voltar pro Brasil. Resolveu voltar pra casa.
Confesso que depois que me despedi do Pedrinho, aquela imagem dele sozinho no hospital ficou na minha mente por vários dias. Poderia ter acontecido com qualquer um. E quase aconteceu comigo no Aconcágua. Talvez por isso que eu entendia bem o que devia estar passando na sua cabeça. Tive mais paciência enquanto esperava as noticias no hospital e estava disposto a fazer o que fosse necessário para que ele ficasse confortável e bem encaminhado quando partíssemos.
A dor. Tenho certeza que ele se afundou em milhões de pensamentos para superar a angústia de não ter conseguido escalar a montanha. De ter adoecido. Da derrota. Isolando-se de tudo e de todos. Imaginando que dali pra frente teria que enfrentar aquilo tudo sozinho. As pessoas perguntando o que aconteceu e ele tendo que dar mil explicações. Quem ama o montanhismo sabe o que eu quero dizer. Mas na verdade eu sei que nessas horas o que a gente mais quer é apoio dos amigos e parceiros. Eu tinha que estar ali.
Ficamos com ele até umas 16h e tivemos que partir. Não queríamos passar na aduana chilena depois das 19h para não ter que escutar outro sermão dos Carabineiros. Chegamos ao Refúgio Atacama às 21h e encontramos todos preocupados por dois motivos: queriam saber notícias do Pedrinho e que a montanha estava perigosa e difícil. Nunca havia visto o Márcio tão serio na minha vida. Ele estava preocupado com a escalada. Resolvemos fazer uma reunião para traçar a estratégia para tentarmos o cume ainda intocado depois da nevasca.
Quem fez o porteio até a base da montanha e viu a rota e a quantidade de neve, demonstrou apreensão. Definimos horários e equipamentos necessários daquele momento em diante. Como seria a subida e a descida, além de outros detalhes. Pra completar, a turma acabou conversando e se entendendo sobre os problemas que tiveram no Cerro Plata. Enquanto a conversa rolava, Márcio olhava pra mim e sorria com satisfação. Ele sabia que tinha um dedo meu naquilo. Mas era tudo o que a gente queria. No fundo, o que todos queriam. Que todo mundo escalasse a montanha sem encanações e ressentimentos. E foi assim dali pra frente.
Dia seguinte desmontamos o acampamento e colocamos o que não levaríamos nos carros. Deixamos apenas uma barraca armada caso alguém precisasse voltar. O plano era fazer o cume no dia seguinte e já descer direto pra pegar os carro e voltar pra Copiapó. Plano bem otimista, não?
Subimos depois de almoçar. Um desnível de 530m em 4 km de trilha. Chegamos a Tejos e nos acomodamos. Acácia chegou e resolveu desistir e descer naquela hora mesmo. Disse que estava muito cansada e com dores de cabeça. Que não queria atrapalhar o resto do grupo e coisa e tal. Nada a convenceu de ficar. Pegou as suas coisas e partiu.
Vimos que havia pertences de duas pessoas e achamos que eram dos americanos que subiram na nossa frente. Mas ninguém apareceu até às 20h e achamos que não viriam mais. Os verdadeiros donos chegaram as 20h30minh. Do cume. Muito cansados e morrendo de frio. Eram os noruegueses.
Eles foram muito displicentes com o horário, pois saíram muito tarde (7h) para a escalada. Pegaram muito vento e frio no final do dia. Mas foram os primeiros a restabelecer a rota para o cume e isso, por um lado, nos animou. Deram boas dicas sobre a rota e nos alertaram mais uma vez sobre a neve muito fofa.
Tive que dormir no chão, pois não tinham camas para todos. Bom… Eu tentei dormir. A altitude e a ansiedade não me deixaram pregar o olho. Meu cérebro trabalhou intensamente naquela noite. Pensei em tudo várias vezes.
Acordamos às 3h, comemos e nos preparamos pra sair. Andrezão resolveu não subir também. Disse que não dormiu nada a noite e sentia dores de cabeça. Resolveu descer quando o dia clareasse. Do time inicial de oito pessoas, apenas cinco iriam tentar o cume.
As 4h eu sai e abri a fila da subida. A lua estava cheia e maravilhosa. Dava pra ver quase tudo na montanha. Mas antes de chegar ao glaciar, comecei a ter problemas com meus óculos. Ficavam embaçando o tempo todo e quando tirava as luvas para arrumar, meus dedos congelavam. Com isso fui perdendo tempo e a turma foi se distanciando. Uma hora decidi tirar os óculos. Mas o ceguinho aqui penou até o dia começar a clarear. Acabei pegando uma rota direta no glaciar. Só via as lanternas balançando muito longe. Mas percebi que as duas rotas se encontravam no final do glaciar, uns 300m acima de mim.
Nesse momento eu passei a escalar com muito cuidado. A inclinação devia ser de uns 40o, o que não era tão complicado. Mas quando eu olhava para baixo, via a rampa com mais de 300m de gelo pra baixo. Se eu escorregasse ali, poderia sumir e ninguém saber onde estava. Troquei os bastões pelo piolet para travar uma eventual queda e toquei pra cima. Já no final do glaciar fiz uma travessia para a esquerda, momento mais perigoso da subida. Finalmente cheguei à rota normal. Escalei tão rápido que alcancei o resto da turma.
Como era de madrugada, o gelo estava mais duro e não afundávamos tanto na neve. Mas quanto mais subíamos, mais fofa ficava a neve. Por volta do meio dia chegamos na cratera do Ojos. Parecia que o fim estava próximo. Mas nos enganamos. Ainda teríamos que contorná-la e subir mais uma rampa de uns 150m para chegar à parte de rocha da escalada. Pra piorar, a neve era tão fofa que às vezes afundávamos até quase a cintura. E isso era muito desgastante.
No meio da subida, Maduro começou a fraquejar. Não havia comido direito de manhã e estava perdendo as forças. Sua subida passou a ficar muito lenta. Mas sempre tinha alguém o acompanhando para ele não ficar só. Na última rampa chegou a cogitar desistir, mas o Maguinho não deixou. Faltavam apenas 150m.
Márcio foi o primeiro a chegar à corda fixa (trecho de rocha com uns 50m de escalada). Era o último obstáculo para o cume. Só ali eu passei acreditar que realmente conseguiríamos. Até olhar pra trás e ver a tempestade chegando. Impressionante como o tempo virou rápido. Subimos mesmo assim. Cheguei ao cume logo depois do Márcio e comemoramos muito. Fiquei emocionado com a garra e sorte que tivemos em todos os momentos dessa viagem. Conseguimos chegar nos dois cumes que planejamos por tantos meses. Mas não tinha acabado ainda. Faltava descer. E com a tempestade, o perigo aumentou consideravelmente.
O vento foi aumentando e começou a nevar. Fizemos algumas fotos no cume e começamos a descer. Marcio foi acompanhando Maduro que estava bem fraco e caia toda hora. Lembrava o próprio Márcio na descida do Aconcágua. Quando afundava na neve tinha dificuldade pra sair. A tempestade ia piorando e a visibilidade era cada vez menor. Quando chegamos de volta à cratera, Marcio e Maguinho seguiram descendo para acompanhar o Maduro. Eu fiquei esperando o Marcelo que teve algumas dificuldades na descida.
Quando ele chegou, o pessoal já estava longe e não vimos por onde foram. Acreditei que o Marcelo sabia o caminho e o segui até que começamos a descer uma rampa com neve muito fofa. Algumas vezes afundávamos até a cintura. Tinha alguma coisa errada. A tempestade piorou muito e nevava muito. Não conseguíamos ver nada além de uns 20m. Ficamos parados e indecisos do que fazer. Continuar descendo ou voltar e procurar a rota correta.
Depois de muita hesitação, decidimos subir. Estava muito cansado e não queria subir de novo, mas vi que não teria outro jeito. O tempo deu uma limpada e chamei o Marcio no rádio para perguntar qual a rota. Ele estava já fora do glaciar e estava acompanhando nossa descida de longe. Ele já havia tentado falar com a gente várias vezes para não descermos mais, pois cairíamos numa greta. Sem visibilidade e sem corda… Imagina a merda.
Confirmamos que acertamos em subir de volta. Marcelo jurava que o caminho era aquele, mas, com mais visibilidade, consegui identificar a rota de subida e fiz um atalho, cruzando o glaciar por onde ninguém tinha passado. Mais um momento de tensão. Passamos sem problemas e caímos na rota normal. Daí pra frente foi tranqüilo.
Chegamos ao abrigo uma hora depois de todos. Estava com tanto frio que meu relógio de pulso que estava protegido pela minha roupa, marcava apenas 15o (o termômetro marca a temperatura externa com influência da temperatura do corpo). Todo mundo estava dentro dos seus sacos de dormir se aquecendo. Fiz o mesmo. Não ia sair dali até o dia seguinte. Desistimos de descer no mesmo dia.
Dia seguinte acordamos cedo e descemos. Pegamos o carro que ficou no refúgio Atacama e fomos encontrar a Acácia e Andrezão que estavam no refugio mais abaixo. Muita comemoração ao encontrá-los. Arrumamos toda a carga e seguimos pra Copiapó. Chegamos por volta das 15h. Compramos as passagens para Santiago no mesmo dia e às 23h partimos pra capital chilena.
Para o Marcio e eu, era o final de uma grande expedição. A maior de nossas vidas. E com certeza, a mais marcante até hoje. Nossos objetivos eram bem desafiadores, mas nós saímos do Brasil confiantes. Chegando lá percebemos que não seria bem assim. Fomos colocados à prova em vários momentos. E com muita habilidade e sorte superamos todos os obstáculos. E aprendemos muito. Muito mesmo. Sobre as montanhas, sobre escalar, sobre as culturas que visitamos e, principalmente, sobre nós mesmos.
Carlão.