Olá, meu nome é V, sou enfermeira e recentemente tive um problema ao receber no Pronto Socorro uma adolescente de 14 anos que queria passar por consulta médica e de enfermagem desacompanhada dos pais. Como proceder nesta situação? Podemos medicar ou realizar procedimentos em menores sem a autorização dos pais?
Boa noite V, esta dúvida é recorrente na saúde e atinge todas as categorias profissionais da saúde e administrativas que atuam na área. Ela provém principalmente da crença de que o menor de 18 anos, não tem poder de decisão e, portanto, necessita da presença de um responsável para ajudá-lo neste momento.
Primeiro devemos separar a criança do adolescente. Óbvio que não vamos atender, medicar ou realizar procedimentos em crianças de 12 anos ou menos, salvo em casos de urgências e emergências, mas quando se trata de adolescentes (maiores que 12 anos) a situação muda completamente de figura. Os dois principais conselhos de profissionais de saúde (COFEN e CFM) já emitiram pareceres a respeito orientando e respaldando a atuação profissional nestes casos.
Mas, como a proposta deste blog não é simplesmente emitir opinião e sem corroborar esta com pesquisa e documentação, vamos aos fatos.
A Lei Orgânica da Saúde, lei federal 8.080/90 estabelece que;
As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
(…)
III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;
IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA 3º estabelece que:
Art. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 11 É assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
Art. 15– A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 16 – O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
(…)
VII – buscar refúgio, auxílio e orientação.
Art. 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais
Direitos Fundamentais: a privacidade, a preservação do sigilo e o consentimento informado. O “Poder familiar” (antigo Pátrio poder) dos pais ou responsáveis legais não é um direito absoluto.
O ECA ressalva o direito da criança e do adolescente em defender seus direitos quando seus interesses venham a colidir com os de seus pais ou responsável.
A prefeitura de São Paulo, editou uma “cartilha a respeito do assunto intitulada Aspectos legais do atendimento ao adolescente – em busca da saúde integral cujo conteúdo é rico em referencias legais e orientações a respeito deste tema. Em suas conclusões o autor do trabalho afirma que;
A regra geral aponta claramente para a possibilidade de atendimento de adolescentes sem a necessidade de um responsável legal presente e lhe garante o sigilo das informações. Aponta também para a possibilidade de acesso a insumos de prevenção, métodos anticoncepcionais e orientação sobre saúde sexual e reprodutiva.
Haverá exceções a esta regra que deverão ser analisadas caso a caso.
Recomenda-se a discussão junto a equipe e registro de todo o processo.
Destaca-se a importância da postura do profissional de saúde, durante o atendimento aos jovens, acolhendo-o e respeitando seus valores morais, sócio-culturais e religiosos.
Como citado anteriormente os dois principais conselhos da área da saúde já emitiram pareceres ao respeito. O Conselho Federal de Medicina emitiu o PARECER CFM nº 25/13 onde deixa claro a necessidade de SEMPRE atender a criança e ao adolescente e resguardar o sigilo profissional, fazendo a comunicação posterior aos pais ou responsáveis, se necessário.
1) Em caso de urgência/emergência o atendimento deve ser realizado, cuidando-se para garantir a maior segurança possível ao paciente. Após esta etapa, comunicar-se com os responsáveis o mais rápido possível;
2) Em pacientes pré-adolescentes, mas em condições de comparecimento espontâneo ao serviço, o atendimento poderá ser efetuado e, simultaneamente, estabelecido contato com os responsáveis;
3) Com relação aos pacientes adolescentes há o consenso internacional, reconhecido pela lei brasileira, de que entre os 12 e 18 anos estes já têm sua privacidade garantida, principalmente se com mais de 14 anos e 11 meses, considerados maduros quanto ao entendimento e cumprimento das orientações recebidas;
4) Na faixa de 12 a 14 anos e 11 meses o atendimento pode ser efetuado, devendo, se necessário, comunicar os responsáveis.
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Finalmente, deve-se cuidar que seja cumprido o art. 74 do Código de Ética Médica, que veda ao médico: “Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente”.
O COREN-SP também já foi consultado a respeito e publicou o PARECER COREN-SP 003 /2013 – CT, que trata da Realização de consulta médica,
administração de medicamentos e coleta de exames em menores de idade,
desacompanhados de responsável legal.
Assim como o parecer do CFM este deixa claro a necessidade de atendimento e manutenção do sigilo profissional na forma da lei.
Da mesma forma, tais menores poderão ser plenamente atendidos em instituições de saúde, inclusive receberem medicamentos parenterais e inalatórios, ainda que desacompanhados, bem como proceder-se a coleta de material para exames, desde que comprovada a situação de urgência e emergência.
Vale lembrar que o bom senso ainda é o melhor juiz. por vezes nos vemos em situações onde a simples avaliação da situação e uma interação com o menor nos dará a orientação da melhor conduta a ser tomada.
Vivemos em uma sociedade onde crianças e adolescentes passam a maior parte de seu tempo sós enquanto seus pais e responsáveis providenciam o sustento familiar, quando este não é feito, também, pela criança ou adolescente. Desta forma privá-los do atendimento^à saúde ou fazer exigências para a realização desta além de ilegal seria desumano e arbitrário.
Espero ter ajudado