Grito dos Mudos

24 Junho, 2007

A partilha de África, I

Filed under: Boaventura Sousa Santos — gritodosmudos @ 8:43 pm

BSSTudo leva a crer que estejamos perante uma nova partilha de África. A do final do século XIX foi protagonizada pelos países europeus em busca de matérias-primas que sustentassem o desenvolvimento capitalista e tomou a forma de dominação colonial. A do início do século XXI tem um conjunto de protagonistas mais amplo e ocorre através de relações bilaterais entre países independentes. Para além dos “velhos” países europeus, a partilha inclui agora os EUA, a China, outros países “emergentes” (Índia, Brasil, Israel, etc.) e mesmo um país africano, a África do Sul. Mas a luta continua a ser por recursos naturais (desta vez, sobretudo petróleo) e continua a ser musculada, com componentes económicos, diplomáticos e militares. Tragicamente, tal como antes, é bem possível que a grande maioria dos povos africanos pouco beneficie da exploração escandalosamente lucrativa dos seus recursos.

Os EUA importam hoje mais petróleo de África do que da Arábia Saudita e calcula-se que em 2015 25% venha do continente. Angola é já o segundo maior exportador africano para os EUA (depois da Nigéria). Por sua vez, a China faz vastíssimos investimentos em África, os maiores dos quais em Angola que, no ano passado, se tornou o maior fornecedor de petróleo à China. E o comércio bilateral entre os dois países ultrapassou os 5 biliões de dólares. Entretanto, as empresas multinacionais sul-africanas expandem-se agressivamente no continente nas áreas da energia, telecomunicações, construção, comércio e turismo. Ao contrário do que se poderia esperar de um governo do Congresso Nacional Africano (ANC) de Nelson Mandela, não as move o pan-africanismo. Move-as o capitalismo neoliberal puro e duro, imitando bem as concorrentes do Norte.

A primeira partilha de África conduziu à Primeira Guerra Mundial e submeteu o continente a um colonialismo predador. E a actual? A luta agora centra-se no petróleo e na distribuição dos rendimentos do petróleo. Uma visita breve a Luanda é suficiente para avaliar da vertigem da construção civil a cargo de empresas chinesas, portuguesas e brasileiras, da selva urbana do trânsito, dos luxuosos condomínios fechados, alugados às empresas petrolíferas, da lotação dos hotéis esgotada com meses de antecedência, enfim, da palavra “negócio” e “empresa” na boca de toda a gente que tem um veículo de tracção às quatro rodas ou aspira tê-lo. Nada disto chocaria, sobretudo num país só há trinta anos libertado do colonialismo, devastado por uma guerra fratricida fomentada pela África do Sul do apartheid e depois financiada pelos amigos de hoje até estes se convencerem de que a paz poderia ser um bom negócio, um país com carências abissais de infra-estruturas sem as quais não será possível qualquer desenvolvimento. O que choca é que, paredes meias com o mundo da renda petrolífera, viva a grande maioria da população de Luanda na mais abjecta miséria dos musseques em barracas de zinco e cartão, sem luz nem saneamento, pagando caro pela água potável, com lixeiras e esgotos pestilentos servindo de recreio às crianças cuja mortalidade é das mais altas do continente.

26 Maio, 2007

Anti-capitalismo em menos de cinco minutos

Filed under: Informação Alternativa,Robert Jensen — gritodosmudos @ 6:04 pm

Sabemos que o capitalismo simplesmente não é o modo mais sensato de se organizar uma economia, mas que, agora, é o único modo possível de se organizar uma economia. Sabemos que os dissidentes dessa sabedoria convencional podem, e deveriam, ser ignorados. Não há mais nem sequer qualquer necessidade de se perseguirem tais heréticos; eles são, obviamente, irrelevantes.

Como sabemos isso tudo? Porque é isso que nos dizem, incansavelmente – geralmente, aqueles que têm mais a ganhar com essa pretensão, sobretudo os que fazem parte do mundo dos negócios e seus respectivos funcionários e defensores nas escolas, nas universidades, nos meios de comunicação de massas e na política convencional. O capitalismo não é uma escolha, mas simplesmente é, como um estado da natureza. Talvez não como um estado da natureza, mas como o estado da natureza. Hoje em dia, contestar o capitalismo é como discutir contra o ar que respiramos. Discutir contra o capitalismo, dizem­‑nos, é simplesmente uma loucura.

Dizem-nos, uma vez após outra, que o capitalismo não é apenas o sistema que temos, mas o único sistema que poderemos ter. Contudo, para muitos de nós, há algo que não convence nessa pretensão. Será essa realmente a única opção? Dizem-nos que nem sequer deveríamos pensar em tais coisas. Mas não podemos deixar de pensar – é esse realmente o “fim da história”, no sentido em que essa frase tem sido usada pelos “grandes” pensadores, para sinalizar a vitória final do capitalismo global? Se esse é o fim da história, nesse sentido, não podemos deixar de nos perguntar: pode o verdadeiro fim do planeta estar longe?

Reflectimos, ficamos inquietos, e esses pensamentos não nos convencem – por um bom motivo. O capitalismo – ou, mais exactamente, o capitalismo corporativo predatório que define e domina as nossas vidas – será a nossa morte se não conseguirmos escapar dele. Encontrar a linguagem apropriada para articular essa realidade é crucial para a política progressista, não em dogmas ultrapassados que alienam, mas em linguagem simples que encontra ressonância entre as pessoas. Deveríamos procurar novos modos de explicar aos colegas de trabalho, nas conversas informais – políticas radicais em menos de cinco minutos – por que devemos abandonar o capitalismo predatório corporativo. Se não fizermos isso, muito provavelmente enfrentaremos o fim dos tempos, e esse fim trará ruptura, e não êxtase ou arrebatamento.

Eis a minha tentativa para uma linguagem sobre este argumento.
O capitalismo é, reconhecidamente, um sistema incrivelmente produtivo que tem criado uma enchente de mercadorias, como nenhum outro sistema conhecido no mundo. É também um sistema basicamente (1) desumano, (2) antidemocrático e (3) insustentável. O capitalismo tem dado a quem está no Primeiro Mundo um montão de coisas (a maioria delas de valor marginal ou questionável) em troca das nossas almas, das nossas esperanças relativas às políticas progressistas e à possibilidade de um futuro decente para os nossos filhos.

Em poucas palavras, ou mudamos ou morremos – espiritualmente, politicamente, literalmente.
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25 Maio, 2007

Socialismo Século XXI

Filed under: Boaventura Sousa Santos,Folha de São Paulo — gritodosmudos @ 12:19 am

BSSO que de mais relevante está a acontecer a nível mundial, acontece à margem das teorias dominantes e, até, em contradição com elas. Há vinte anos, o pensamento político conservador declarou o fim da história, a chegada da paz perpétua dominada pelo desenvolvimento “normal” do capitalismo – em liberdade e para benefício de todos – finalmente liberto da concorrência do socialismo, lançado este irremediavelmente no lixo da história. À revelia de todas estas previsões, houve, neste período, mais guerra que paz, as desigualdades sociais agravaram-se, a fome, as pandemias e a violência intensificaram-se, a China “desenvolveu-se” sem liberdade e mediante violações massivas dos direitos humanos e, finalmente, o socialismo voltou à agenda política de alguns países. Concentro-me neste último porque ele constitui um desafio tanto ao pensamento político conservador, como ao pensamento político progressista. A ausência de alternativa ao capitalismo foi tão interiorizada por um como por outro. Daí que, no campo progressista, tenham dominado “terceiras vias”, buscando encontrar no capitalismo a solução dos problemas que o socialismo não soubera resolver.

Em 2005, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, colocou na agenda política o objectivo de construir o “socialismo do século XXI”. Desde então, dois outros governantes – tal como Chávez, democraticamente eleitos –, Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), tomaram a mesma opção. Qual o significado deste aparente desmentido do fim da história? Qual o perfil da alternativa proposta ao capitalismo? Que potencialidades e riscos ela contém? O socialismo reemerge porque o capitalismo neoliberal, não só não cumpriu as suas promessas, como tentou disfarçar esse facto com arrogância militar e cultural; porque a sua voracidade de recursos naturais o envolveu em guerras injustas e acabou por dar poder a alguns países que os detêm; porque Cuba – qualquer que seja a opinião a respeito do seu regime – continua a ser um exemplo de solidariedade internacional e de dignidade na resistência contra a superpotência; porque, desde 2001, o Fórum Social Mundial tem vindo a apontar para futuros pós-capitalistas, ainda que sem os definir; porque nesse processo ganharam força e visibilidade movimentos sociais, cujas lutas pela terra, pela água, pela soberania alimentar, pelo fim da dívida externa e das discriminações raciais e sexuais, pela identidade cultural e por uma sociedade justa e ecologicamente equilibrada parecem estar votadas ao fracasso no marco do capitalismo neoliberal.

O socialismo do séc. XXI, como o próprio nome indica, define-se, por enquanto, melhor pelo que não é do que pelo que é: não quer ser igual ao socialismo do séc. XX, cujos erros e fracassos não quer repetir. Não basta, porém, afirmar tal intenção. É preciso realizar um debate profundo sobre os erros e fracassos para que seja credível a vontade de evitá-los. Quando, em Dezembro passado, o presidente Chávez anunciou o propósito de criar um partido socialista unificado a partir de diferentes partidos que apoiam o governo, o temor que tal gerou de, com isso, estar a propor um regime de partido único de tipo soviético, é bem demonstrativo de como estão vivas as memórias do passado recente.

Se tal desidentificação em relação ao socialismo do séc. XX for levada a cabo de maneira consequente, alguns dos seguintes traços da alternativa deverão emergir: um regime pacífico e democrático assente na complementaridade entre a democracia representativa e a democracia participativa; legitimidade da diversidade de opiniões, não havendo lugar para a figura sinistra do “inimigo do povo”; modo de produção menos assente na propriedade estatal dos meios de produção do que na associação de produtores; regime misto de propriedade onde coexistem a propriedade privada, estatal e colectiva (cooperativa); concorrência por um período prolongado entre a economia do egoísmo e a economia do altruísmo, digamos, entre Windows Microsoft e Linux; sistema que saiba competir com o capitalismo na geração de riqueza e lhe seja superior no respeito pela natureza e na justiça distributiva; nova forma de Estado experimental, mais descentralizada e transparente, de modo a facilitar o controle público do Estado e a criação de espaços públicos não estatais; reconhecimento da interculturalidade e da plurinacionalidade (onde for caso disso); luta permanente contra a corrupção e os privilégios decorrentes da burocracia ou da lealdade partidária; promoção da educação, dos conhecimentos (científicos e outros) e do fim das discriminações sexuais, raciais e religiosas como prioridades governativas.

Será tal alternativa possível? A questão está em aberto. Nas condições do tempo presente, parece mais difícil que nunca implantar o socialismo num só país, mas, por outro lado, não se imagina que o mesmo modelo se aplique em diferentes países. Não haverá, pois, socialismo e sim socialismos do séc. XXI. Terão em comum reconhecerem-se na definição de socialismo como democracia sem fim.

4 Maio, 2007

Porquê o Socialismo?

Filed under: Albert Einstein,Monthly Review,Resistir.info — gritodosmudos @ 4:42 pm

Será aconselhável para quem não é especialista em assuntos económicos e sociais exprimir opiniões sobre a questão do socialismo? Eu penso que sim, por uma série de razões.

Consideremos antes de mais a questão sob o ponto de vista do conhecimento científico. Poderá parecer que não há diferenças metodológicas essenciais entre a astronomia e a economia: os cientistas em ambos os campos tentam descobrir leis de aceitação geral para um grupo circunscrito de fenómenos de forma a tornar a interligação destes fenómenos tão claramente compreensível quanto possível. Mas, na realidade, estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis gerais no campo da economia torna-se difícil pela circunstância de que os fenómenos económicos observados são frequentemente afectados por muitos factores que são muito difíceis de avaliar separadamente. Além disso, a experiência acumulada desde o início do chamado período civilizado da história humana tem sido – como é bem conhecido – largamente influenciada e limitada por causas que não são, de forma alguma, exclusivamente económicas por natureza. Por exemplo, a maior parte dos principais estados da história ficou a dever a sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Monopolizaram as terras e nomearam um clero de entre as suas próprias fileiras. Os sacerdotes, que controlavam a educação, tornaram a divisão de classes da sociedade numa instituição permanente e criaram um sistema de valores segundo o qual as pessoas se têm guiado desde então, até grande medida de forma inconsciente, no seu comportamento social.

Mas a tradição histórica é, por assim dizer, coisa do passado; em lado nenhum ultrapassámos de facto o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os factos económicos observáveis pertencem a essa fase e mesmo as leis que podemos deduzir a partir deles não são aplicáveis a outras fases. Uma vez que o verdadeiro objectivo do socialismo é precisamente ultrapassar e ir além da fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência económica no seu actual estado não consegue dar grandes esclarecimentos sobre a sociedade socialista do futuro.

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1 Maio, 2007

Acerca do Grito dos Mudos

Filed under: Edição — gritodosmudos @ 1:53 am

Seja Bem-Vindo,

Este blog é agora inaugurado por dois estudantes universitários. O nosso projecto não poderia ter nascido em melhor data.

Hoje é 1 de Maio. É o dia em que nós saímos às ruas deste planeta e gritamos aquilo que recalcámos em silêncio durante o nosso dia-a-dia. É o dia em que fazemos tremer a estrutura social que nos explora e aprisiona numa precária condição social. Neste dia, muitos de Nós não sabe ou não se lembra, para onde este dia nos encaminhará; muitos de Nós estão descrentes ou acreditam naqueles que sistematicamente afirmam que o mundo mais justo é uma utopia impraticável. Esse estado de espírito é compreensível: como podemos acreditar num Mundo Novo se não sabemos exactamente o que isso é? Se nem sequer compreendemos bem este? Se nem aqueles que muito sabem, conseguem fazer deste mundo um mundo melhor? E, o que é mesmo isso de Socialismo?

É a muitas destas perguntas a que os autores deste blog se propõem a tentar responder. Não somos de maneira nenhuma intelectuais com idade e postura de quem muito tem para ensinar. Não temos de maneira nenhuma todas as respostas, temos sobretudo muito para aprender. Somos apenas jovens que procuram compreender o Nosso mundo e as suas dinâmicas sociais de uma forma científica, de forma a permitir-nos saber como mudá-lo, e fazer deste planeta um lugar melhor para a esmagadora maioria de Nós.

Convidamos todos a visitarem-nos regularmente. Publicaremos textos que mais nos ajudaram ou irão ajudar na nossa formação política, e publicaremos artigos retirados de sites de referência que nos ajudarão a compreender melhor o Nosso Mundo. Tudo isto da forma mais acessível a todos.

Assim, talvez ajudemos alguns de Nós – Trabalhadores ou futuros trabalhadores – a melhor articular nossos conhecimentos, tornando-nos mais conscientes. Fazendo das futuras lutas e dos próximos Primeiros de Maio, verdadeiros terramotos sociais que nos Libertarão;
A revolução verdadeiramente revolucionária realizar-se-á, primeiramente, não no mundo exterior mas na consciência de cada um de nós. Ganhemos então a consciência, revolucionaremos depois.

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