Aquelas que já tiveram um ídolo – e ficaram super ansiosas ao saber da realização do show de suas bandas preferidas em suas cidades, e ao se aproximar o dia não conseguiam pensar em outra coisa – vão se recordar da adolescência ao ler Este é o Mar, da escritora e jornalista argentina Mariana Enríquez. É da devoção das fãs por seus ídolos que se alimentam os seres fantásticos que protagonizam esta história. É impossível não se lembrar dos gritos e mais gritos que faziam com que a gente perdesse a voz durante a semana após os shows, ou da verdadeira luta que era se aproximar do palco só para ver os ídolos de perto, na esperança que nos olhassem e quem sabe até piscassem ou mandassem um beijo.
Ao olhar para trás, vejo que essa certa obsessão fez parte da minha adolescência e, apesar de hoje não fazer nenhum sentido, vivi a euforia, a visceralidade e até mesmo o tesão em ser fã em uma pista de show. É para perto desse cenário que nos transfere a história. Mariana, que venceu o prêmio Cidade de Barcelona com seu livro de contos As coisas que perdemos no fogo, em 2016, esteve presente na Flip de 2019 com seu novo romance. Com uma narrativa misteriosa, que ao início parece fazer pouco sentido, a autora nos conta a história de uma deusa, um ser fantástico, Helena, encarregada por outras deusas da mitologia a criar uma lenda do rock, James Evans, vocalista da banda Fallen.
A história oferece um contraponto ao universo do rock’n’roll que é predominado por homens, pois são essas deusas que comandam a vida dos grandes astros e empurram seus destinos para morte para que sejam eternizados pela cultura.
Helena era apenas mais uma operária do Enxame, classe de trabalhadoras frenéticas responsáveis por serem fãs devotas vinte e quatro horas por dia. Porém, tinha o desejo de conhecer sua origem, ter um nome, se destacar, e sabia que só por meio de muito trabalho isso seria possível, por isso, decide fazer um sacrifício. Foi influenciando uma garota de quatorze anos a cometer suicídio que a protagonista se diferenciou e ascendeu para o status de Luminosa, indo viver junto e conhecer os segredos de outras deusas mitológicas, como Hécate e Vashti, responsáveis pela criação de lendas do rock como John Lennon, Kurt Cobain, Jim Morrison e Elvis Presley.
Após um período de aprendizado com as mais experientes, Helena foi enviada para Los Angeles responsável por criar a lenda de James. Receberam-na naturalmente e assim desapercebidamente passava a presença dela para o vocalista, que se deitava cada noite com uma fã diferente. Helena se dedicava e trabalhava pela banda como se fosse uma máquina mas ninguém percebia que a sua capacidade era sobrenatural. Apesar de ser uma mulher muito bonita, não corria sangue nas suas veias e não palpitava seu coração, não dormia e nem sentia dor. Mas ninguém percebia que ela era diferente.
Mesmo sendo de outra natureza, Helena sentia ciúmes das fãs que desejavam possuir James e faziam tumultos nas portas dos hotéis para fazer fotos e conversar com o ídolo. O cantor era um homem bonito que compunha e interpretava músicas não tão boas, mas que conquistava fãs pelo mundo inteiro, que o seguiam com asas negras e eram conhecidas como angélicas. Durante uma turnê na Europa a narradora foi dominando o corpo do cantor para que ele se sentisse cada vez mais desgastado por causa da asma, cuidadosamente o manipulando para que ficasse fraco e preparado para se tornar uma lenda.
Um livro misterioso que deixa muitas linhas soltas mas que também traz referências interessantes mesmo que superficialmente. Como as deusas da mitologia que aparecem no livro e são responsáveis por criar lendas por meio da morte de grandes ídolos do rock e a inconclusividade real dessas mortes. Um lugar onde deusas moram juntas à beira-mar e andam nuas no meio de uma floresta. Canções ancestrais que têm o poder de encantar as pessoas.
Todo esse universo fantástico se contrapõe à realidade em que cresceu o cantor James Evans. A autora se utiliza dessa contradição que aproxima muito a obra dela ao realismo fantástico, movimento literário que teve mais expressão na América Latina no século 20, tendo como característica principal unir o universo mágico e a realidade. Cem anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez é reconhecido até hoje como um dos principais livro do gênero.
Participei pela primeira vez de um clube de leitura chamado Leia Mulheres, coordenado por Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, que teve Este é o Mar como leitura de outubro. Achei muito interessante a experiência pois não havia entendido se eu tinha gostado ou não desse livro e a partir da crítica de outras mulheres pude perceber o quanto interessante ele se tornou para mim. Até o fato instigante de não se aprofundar em muitos pontos provocam uma inquietação no leitor. Para a opinião de algumas mulheres que participaram do grupo, parece que a autora deu início a uma série com esse livro.
Mergulhando na história percebemos também uma crítica à divisão social do trabalho. Helena não tinha nome e trabalhava exaustivamente quando era só mais uma operária do Enxame. Depois de cometer um sacrifício foi reconhecida pelas deusas como integrante das Luminosas, uma camada social superior desses seres, onde se adquiriam privilégios, como morar em um paraíso e ter identidade própria. A falta de identidade e a alienação são questões que remetem à realidade do trabalhador na sociedade capitalista, que, ao ascender socialmente, pode ter acesso a direitos negados à classe trabalhadora. Também é interessante observar que para tal ascensão deve ser feito um sacrifício de cunho imoral.
O livro de Mariana Enríquez passa superficialmente por questões que suscitam reflexões profundas sobre a sociedade contemporânea, como machismo, vulnerabilidade social, solidão, busca por identidade e valorização da ancestralidade. Consegue tratar dessas questões dentro do universo da decadência do rock e da idolatria das fãs de maneira inusitada, o que resulta em um livro que, apesar de ser meio estranho, prende a atenção do leitor do começo ao fim.