Empinar a tristeza por Carlos Urbim

Ele vestia uma camisa branca com bolinhas vermelhas quando chamou o meu nome. Eu subi no palco meio envergonhada e meio desconfiada. Aos 12 anos, eu era muito menos criança do que hoje e não sabia se era aceitável um homem vestir bolinhas vermelhas numa redação de jornal. Mas ele sorria e me esperava de braços abertos. Ganhei um abraço apertado e, com aquela voz de risada, ele falou no meu ouvido: “Belíssimo teu texto sobre o Vitor Ramil.” Perplexa, recebi o certificado da Zero Hora de Jornalista Por Um Dia. Depois descobri que aquele era Carlos Urbim, a primeira pessoa a manifestar a certeza de que eu poderia ser jornalista todos os dias.

Anos depois, Urbim foi eleito patrono da Feira do Livro de Porto Alegre e uma entrevista rápida virou uma tarde na casa dele. Eu já era formada e produzia um programa de televisão na mesma empresa em que o havia conhecido. Ele não sabia – ou talvez soubesse, porque grandes escritores sabem muito mais do que imaginamos -, mas eu estava triste, muito triste. Não gostava do que fazia, não sabia se tinha estômago para as corporações. Todos os dias, pensava em desistir da carreira. Em poucas horas, Carlos Urbim me mostrou mais brinquedos do que eu tinha visto na vida inteira. Contou histórias engraçadas, mostrou livros, promoveu um tour pelas paredes coloridas de sua casa. Eu lembrei como era brincar e saí de lá pensando que, se de vez em quando houvesse encontros como esse, o jornalismo valia a pena.

Nessa mesma época, conheci um lugar mágico. O Caminho das Serpentes, em Morro Reuter, é um parque, uma pousada e um ateliê. Logo à direita do portão de entrada, um caminho de mosaicos multicoloridos leva a uma pequena casa, feita de arte e livros. O espaço se chama Biblioteca Carlos Urbim, uma homenagem da artista Cláudia Sperb a um de seus melhores amigos, o guri daltônico empinador de pipas. Desde 2010, visito o lugar sempre que posso. É a melhor maneira de lembrar a mim mesma de como o universo reúne almas afins para criar luz e beleza.

Na manhã de ontem, eu estava na redação da TV Câmara de Porto Alegre quando li sobre a morte de Carlos Urbim. Assim que reparti a notícia com os colegas, senti a água chegando aos olhos e caí no silêncio agudo da descrença. Alguém perguntou se éramos próximos, se éramos amigos. Não, não éramos. Mas eu estava pensando nas bolinhas vermelhas e podia enxergar aquele sorriso enorme. Não foi uma perda pessoal. Foi uma perda para a humanidade. Nessas horas, a gente tem todo o direito de ficar triste e não precisa explicar.

Os sonhos não envelhecem

Em meados dos anos 60, Belo Horizonte efervescia em manifestações culturais e movimentos políticos. Antes do Clube da Esquina, aqueles talentosos mineiros – Bituca, os Borges e outros tantos músicos – forjaram suas visões de mundo em sessões de cinema francês, discos dos Beatles, destilados baratos e discussões políticas disfarçadas de festas. Indignaram-se com a ditadura, a repressão e o preconceito, mas optaram pelo combate lírico, pela tradução emocional de uma época em melodias. Outros foram além. À guerrilha, ao exílio, à prisão. No livro Os sonhos não envelhecem – histórias do Clube da Esquina (Geração Editorial, 1996), Márcio Borges cita diversas vezes a amiga Dilma. Ainda não a Rousseff, nem a “presidenta”, apenas a líder estudantil convicta, disposta a enfrentar horrores pela liberdade do Brasil. Pois, nestas eleições, boa parte da campanha do PT investiu no passado militante da candidata. Tal estratégia, embora tenha servido como propaganda e comparação ao passado do adversário, não serve como base de governo. No atual estágio de complexidade do século XXI, não se pode aceitar uma política em que os fins justificam os meios.

Sim, o Brasil saiu pela primeira vez do mapa da fome, o desemprego anda baixo, o acesso às universidades está mais inclusivo. Tudo isso é inédito e absolutamente fantástico. De forma geral, a vida melhorou. Eu mesma fiz duas viagens internacionais apenas neste ano – e ainda lembro bem da época em que meus pais não podiam me comprar um sorvete nos finais de semana. Por outro lado, o país ainda não resolveu seus problemas estruturais, nenhuma grande reforma saiu do papel. Só os muito ingênuos e os mal intencionados acreditam que a corrupção começou com e pertence ao PT, mas é impossível negar que o partido compactuou com os desvios de conduta. Em nome da governabilidade, valores éticos fundamentais foram esquecidos. E, diante de uma vitória apertada como a deste domingo, é muito difícil ver Dilma Rousseff dividir o palanque com partidos como o PP, o herdeiro direto da Arena, dos apoiadores do regime militar, do suporte político aos torturadores da própria presidente. Para não ficar em mágoas históricas, é igualmente inexplicável ter o apoio do PRB, um dos integrantes da auto-intitulada “bancada evangélica”, postura no mínimo duvidosa do ponto de vista constitucional em um país laico. Não é nenhum exagero futurológico apostar que essas bizarrices políticas tendem a enfraquecer ainda mais o Partido dos Trabalhadores. O problema é que a esquerda não pode sustentar maiores desprestígios.

Movimentos de extrema-direita crescem em vários países e os imaginários de negação da política ganham cada vez mais legitimidade. Não vamos longe: aqui, no Rio Grande do Sul, acabamos de eleger um governador sob um discurso apolítico. Enquanto isso, o mundo nunca precisou tanto da esquerda. Não falo de partidos específicos nem de ilusões anticapitalistas. Refiro-me à ideologia de esquerda e às suas características mais simples – a solidariedade perante a competição, a igualdade em detrimento da falsa meritocracia, a justiça ao invés de uma insensata verdade absoluta. Os desafios do planeta são urgentes e a utopia não deixa de ser uma forma de enfrentar a mediocridade. Os sonhos realmente não envelhecem, presidente Dilma. Os partidos, sim. É hora de reinventar o PT e deixar algum legado digno de quem um dia inspirou alguns dos mais geniais artistas do Brasil.

Liana Timm, plural e incessante

Eu desconfiei quando comecei a pesquisar sobre a Liana Timm. Na página inicial, o site informa que ela é artista multimídia, poeta e designer. Alguns cliques a mais e você descobre que é também arquiteta com respeitável carreira acadêmica, empresária responsável pela editora Território das Artes e atriz (além de idealizadora) da série de espetáculos teatral-filosófica Freud e os escritores. Eu não consigo sequer preencher um reles formulário – profissão: jornalista – sem pensar que estou cometendo uma fraude. Então, desconfiei. Ainda não sei exatamente como, mas, depois de entrevistar a Liana, descobri que é possível, sim, ser tudo-isso-ao-mesmo-tempo-agora. A exposição que marca seus 45 anos como artista recebeu o justo nome de Atelier Incessante.

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Até o dia 31 de outubro, a galeria O Arquipélago, do Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, reúne diversas obras organizadas sob os títulos “Outro(s) de mim”, “Vago(s) e Disperso(s)” e “Recorte(s) Imaginário(s)”. Liana Timm internaliza e externaliza referências constantemente, como se a reinvenção fosse a essência de sua identidade. Acredito que seja mesmo. Uma identidade que reúne outras tantas, todas autênticas em sua intenção. Mais do que em técnicas, a diversidade da artista é expressa também em diferentes linguagens. Além de quadros, há poesia nas paredes e painéis no meio da sala. A exposição toda pode ser interpretada como uma única instalação de infinitos sentidos. Foram programadas, ainda, “experiências cênicas multimídia”, as quais ocorrem no auditório do centro cultural.

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Eu não entendo muito sobre fazer arte. Na verdade, não entendo nada. As aulas de desenho me apresentaram às primeiras notas baixas da vida escolar. Nunca consegui aprender um instrumento. Meu marido músico se encolhe de dor sempre que eu insisto em cantar pela casa. Bordado, tricô, crochê, nunca entendi o processo dessas coisas. Mal consigo pintar dentro das linhas. Mas sou boa de ver e de conceitos eu entendo. Talvez seja por isso que a arte da Liana Timm me cause tanto impacto. Cada obra interliga ideias, como sinapses a construir sentidos. Seu fazer artístico parece uma narrativa do próprio pensamento, o que, inevitavelmente, gera novas interpretações e inquietações. Arte incessante.

Desde a abertura de Atelier Incessante, quis registrar um pouco da beleza apresentada por Liana Timm. Bem, antes tarde do que mais tarde. A questão é que ainda dá tempo – de ver a exposição, de construir novos conceitos, de interligar ideias. Sempre é tempo de mudar e acrescentar mais um “eu” às nossas identidades. É dos que nunca se permitem ultrapassar essa fronteira que devemos desconfiar.

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Obama, Estado Islâmico e o 11 de setembro

Na noite de ontem, o presidente Barack Obama declarou guerra ao grupo extremista Estado Islâmico. O discurso foi transmitido ao vivo na véspera do 13º aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Os americanos gostam de um bom simbolismo. E estão certos nessa tradição. Se há algo capaz de manter e fortalecer uma nação na globalidade contemporânea, esse algo é a identidade cultural, a costura entre sujeitos e Estado. Como afirmou o teórico dos Estudos Culturais Stuart Hall, no já clássico A identidade cultural na pós-modernidade, a tensão entre o global e o local é a grande discussão no momento em que as identidades nacionais se tornam híbridas, invadidas por imagens e valores internacionais. Hall nos deixou há poucos meses, mas a questão está longe de ser encerrada. A batalha por corações e mentes é a única que leva a garantias políticas e, assim como Obama, os mentores do EI sabem disso.

No entanto, a incitação de verdades emocionais em nome de qualquer Estado, especialmente da América, tem um limite. Ao mesmo tempo em que inaugurou uma nova era de dicotomia entre Ocidente e Oriente, o 11 de setembro também destruiu as últimas possibilidades de pensamento reducionista em uma política externa respeitável. Em 2008, a campanha de Barack Obama realmente representou a audácia da esperança para quem estava farto da postura imediatista de George W. Bush. O intelectual de Harvard, de descendência multicultural e com trânsito entre lideranças internacionais, assumiria para redimir as trágicas decisões do texano boçal. Obama nos decepcionou. Nem é preciso convicção ideológica para perceber que, em pouco mais de cinco anos, a atuação dos Estados Unidos saiu dos trilhos propostos no plano de governo democrata. Na edição deste mês da revista Foreign Policy, David Rothkopf aponta as dificuldades da política externa de Obama e sugere uma irônica fonte de inspiração para salvar a gestão das questões internacionais: o segundo mandato de Bush.

A julgar pelo pronunciamento de ontem, Obama já acatou a dica. Ainda que servido de números e estatísticas sobre os investimentos em segurança, o presidente norte-americano recorreu a velhos estereótipos para passar seu recado. Já no início do discurso, abordou a dificuldade em “apagar todos os traços do mal no mundo” e a necessidade de se “manter vigilante” às ameaças (“We cannot erase every trace of evil from the world, and small groups of killers have the capacity to do great harm. That was the case before 9/11, and that remains true today. That’s why we must remain vigilant as threats emerge.”). Quem não lembra de George W. Bush, megafone em punho, em meios aos escombros do World Trade Center? “Eu ouço vocês”, ele disse aos operários do resgate, “o resto do mundo lhes ouve”, continuou, “e as pessoas que derrubaram esses prédios vão ouvir todos nós em breve!” (“I can hear you! The rest of the world hears you! And the people — and the people who knocked these buildings down will hear all of us soon!”). Um pouco mais dramático, é verdade, mas Obama também aumentou o tom em seguida. “Esse é um princípio fundamental da minha presidência: se você ameaçar a América, não vai encontrar nenhum abrigo seguro” (“This is a core principle of my presidency: if you threaten America, you will find no safe haven.”).

O desafio dos escritores de discursos, notadamente os da Casa Branca, é garantir que a mensagem pronunciada seja clara e inspire concordância. Para isso, é fundamental usar uma linguagem adaptada à personalidade do próprio presidente. Nesse sentido, Bush sempre soou natural em sua retórica da força inigualável e imbatível dos Estados Unidos. Obama, por sua vez, não convence. Quando fala das “infindáveis bênçãos” da América, responsáveis por conferir ao país um “contínuo fardo” na responsabilidade de liderar o mundo na busca por liberdade, justiça e dignidade, ele apenas profere palavras (“America, our endless blessings bestow an enduring burden. But as Americans, we welcome our responsibility to lead. From Europe to Asia — from the far reaches of Africa to war-torn capitals of the Middle East — we stand for freedom, for justice, for dignity.“). Não há a mínima centelha de uma convicção moral herdada dos founding fathers. O cantor e compositor Bob Dylan, apoiador da candidatura do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, disse que “ele parece um personagem de ficção, mas é real“. A afirmação foi logo após a posse. Imagino que hoje Dylan concordaria que a atuação de Obama é cada vez mais inverossímil. Mesmo com uma trajetória culturalmente rica e um passado familiar que desafia padrões tradicionais – a biografia é muito bem descrita no livro A Ponte, de David Remnick -, Obama insiste no discurso do “nós” contra “eles”.

Muitas vezes, a ficção é mais verossímil que a realidade. Por isso, nos momentos mais complexos, gosto de pensar no que faria Jed Bartlet, o presidente eternizado pela série The West Wing (NBC, 1999-2006), de Aaron Sorkin. Democrata, prêmio Nobel de Economia, descendente de um irlandês signatário da Declaração da Independência, era um opositor das soluções simplistas, das respostas de dez palavras.

O contexto internacional não permite mais reduções unilaterais. Há genocidios, doenças, mudanças climáticas, questões urgentes que só podem ser tratadas sob uma perspectiva transacional. Nesse cenário, há lugar para os valores norte-americanos. O país, pioneiro na instituição de uma democracia republicana, pode contribuir – e até mesmo liderar – uma nova configuração global de distribuição de poder. Mas, para isso, é preciso superar a lógica realista da política externa. Nesse 11 de setembro, reforçam-se as homenagens aos mortos e repetem-se frases como “nunca esqueceremos”. Ninguém é capaz de esquecer a imagens mais chocante do século. Pois que a memória sirva, então, não apenas para uma narrativa de resiliência do povo americano. Que o luto inspire uma outra reconstrução de identidades, baseada na reflexão para o entendimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

A lição napoleônica

Voltar à pequena cidade onde você cresceu é sempre um perigo, mesmo que a visita seja breve. É preciso estar preparado, pois a cada esquina o passado estará à espera. Pode aparecer alguém que partiu seu coração ou, pior, alguma boa alma despedaçada pela sua própria crueldade adolescente. Nunca se sabe. Em plena avenida principal, talvez você esbarre naquele ex-colega catador-de-meleca-do-nariz (permita-me esquecer, ó deus) ou em meros conhecidos que ainda lembram de quando você se vestiu de vela para o aniversário do colégio (permita que eles esqueçam, senhor). Por sorte, nessa última passagem por Santa Cruz do Sul, encontrei apenas uma senhora que mudou minha vida irreversivelmente.

Maria Inês era professora de História no Colégio Marista São Luís. Mais do que ensinar, ela tinha uma capacidade estranha. Nas aulas, nós nos sentíamos ao mesmo tempo burros e inteligentes. Método revolucionário. ela nos fazia pensar. Um dia, lá pela quarta ou quinta série, a profe anunciou um trabalho-surpresa. Valia nota. A pergunta era mais ou menos assim: “Napoleão Bonaparte foi um personagem bom ou ruim na história?” Os colegas começaram a escrever rapidamente. Alguns sorriam. Ah, a satisfação da certeza. Já eu estava me sentindo burra, muito burra. Olhava para a folha, para o teto, de novo para os colegas, de volta para a folha. Eu não sabia a resposta. Finalmente, talvez temendo um colapso nervoso da minha parte, Maria Inês me perguntou qual era o problema. Falei a verdade, eu não sabia o que escrever. Para mim, Napoleão não havia sido nem mau nem bom. Sim, ele foi um maluco que coroou a si mesmo como imperador. Mas também foi um grande militar, garantiu muitas conquistas à França. Ela riu e me disse: “Parabéns. Tu vais te dar bem na área de humanas.” Não lembro da nota, deve ter sido dez com estrelinha.

Levou mais alguns anos para eu entender o que essa tal de humanas tinha a ver com jornalismo e também política, que é hoje o meu objeto de trabalho. Na TV Câmara de Porto Alegre, já lembrei muitas vezes da lição napoleônica. Políticos costumam ser muito dicotômicos, o que não quer dizer que tenham posições claras. Combine-se isso a uma cultura de negação da política e os debates passam a ser do tipo direita X esquerda, liberal X comunista, revolucionário X ditador. Logo, logo se chega ao bom e mau. E esse é o argumento menos democrático que existe, para não dizer simplesmente burro. Nesse tempo de contato direto com vereadores, secretários e prefeitos, conheci muita gente boa. Nem sempre esses são os melhores políticos. Assim como os bons políticos, aqueles com projetos, presença e opinião, nem sempre são bons seres humanos. E quando digo bons não quero dizer um bom pai, marido, filho ou pastor – aliás, desconfio muito de quem precisa de certificação divina para sua humanidade. Quando falo de pessoas boas, em termos políticos, refiro-me aos coerentes, aos que respeitam a posição alheia ainda que dela discordem, aos que dialogam da mesma forma com repórteres e comunidades. São pessoas sem preguiça de pensar e discutir.

É claro que não é fácil. Conversar cansa e pensar demais paralisa. Um dos grandes desafios da política é encontrar o ponto de equilíbrio. E justamente por isso, apesar de sermos todos seres políticos, a atividade política é para os fortes. Coisas absurdas acontecem na política profissional. Há alguns meses, por exemplo, parlamentares de longa carreira me disseram com todas as letras: não houve ditadura, não houve violência do Estado, é tudo invenção da esquerda. E de quem um dia combateu o regime militar, já recebi ameaças de censura. É preciso estômago. Os golpes vêm sem aviso. Mas o problema é que, quem fortalece o estômago, geralmente endurece o coração. Por isso, enquanto abraçava a profe Maria Inês no meio da praça, lembrei de novo daquela aula. Em tempos de ódios tão precisos e certezas tão definitivas, não custa lembrar do Napoleão em cada um de nós. Até porque as contradições acabam com as ambições mais estratégicas e, ao fim e ao cabo, a política não passa de uma pequena cidade. Tem intriga, história e tradição. E gente pode até fingir que não viu, mas o passado sempre aparece.

Eterno retorno

Jornalistas são criaturas amaldiçoadas. Não por reclamarem constantemente dos baixos salários ou das condições de trabalho aviltantes e, ainda assim, submeterem-se a tal realidade. Bem, talvez também por isso. Mas jornalistas carregam a sina da memória, infortúnio que nos afasta do absoluto conforto contido no simplório. Os profissionais do ramo, ao menos os que eu admiro e tento internalizar diariamente, estão condenados a lembrar dos fatos, fazer conexões entre eles e estabelecer contextos a fim de explicar algo qualquer sobre esse emaranhado da vida humana. Não se trata de uma pretensão totalizante sobre o conhecimento geral do universo (ok, em alguns casos perdidos se trata disso, sim). É mais um impulso incontrolável por entender e explicar o que se passa. Uma maldição.

Há seis anos, em 29 de agosto de 2008, entrei oficialmente para esse clube de enfeitiçados, loucos, chatos – isso nos melhores dias. Geneton Moraes Neto, repórter com muitos ótimos dias no currículo, publicou nessa semana no Facebook: 
“Salvar da perdição as histórias, palavras e cenas que a gente ouve de personagens anônimos ou famosos: eis o que me anima a fazer tantas entrevistas – em vez de ficar nos corredores das redações maldizendo os horrores da profissão. Dá trabalho. Sempre deu. Mas vale a pena. Faz de conta que vale.” E cá estou, diplomada, especializada, tantas vezes frustrada, tentando mais uma vez justificar a existência de um mísero blog. Não é fácil e tampouco é necessário. Nesta estonteante era de mobilidade, nuvens e informação infinita, cada um lê (ou não lê) o que quer. O jornalismo já mudou e vai mudar muito mais, em forma e conteúdo. Talvez os blogs desapareçam, logo após os jornais e as grades de televisão. Quiçá passemos a nos comunicar com menos de 140 caracteres. Mas ainda há de permanecer o alfabeto, as palavras e um tanto de interpretação. Algum sentido há de sobrar e a maldição do jornalista estará a buscá-lo. Basta assistir ao novo documentário de Jorge Furtado, O Mercado de Notícias, para entender que o vírus da notícia e seus desdobramentos é contagioso e muito provavelmente incurável.

Certa vez, ainda na faculdade, fui designada para entrevistar a Eliane Brum. Ela já era uma celebridade da reportagem entre os estudantes de jornalismo e estaria na universidade para uma palestra. O professor disse que eu faria a matéria pois tínhamos, Eliane e eu, características em comum. Logo tomei como um elogio – a inexperiência é pretensiosa. Teria eu um texto tão maravilhosamente preciso e emocionante quanto o de Eliane? Não tinha e nem tenho. Porém, há poucos meses, depois de ler Meus Desacontecimentos (Leya, 2014), compreendi a dimensão da semelhança. Eis o que escreveu Eliane Brum: “Como contadora de histórias reais, a pergunta que me move é como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa.” Cada um a seu nível, cada um a seu tempo e com sua linguagem, mas o fato é que em tudo há uma história e criaturas de nossa espécie estão fadadas a querer contá-las. Precisam contá-las, nem que seja para dar sentido à própria história.

E eis aqui, então, uma nova tentativa de narrar algumas coisas, nem sei bem ainda o quê. Pode ser mais uma abordagem, nada original,  ao exercício de um jornalismo literário, cultural, novo jornalismo, new new journalism, como queiram chamar. Ou apenas outro dispensável blog de opinião, futilidades, elucubrações, literatura fajuta. Pois que seja. Maldito hábito. Benditas palavras.

Entrevista com a patrona

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“Não escrevo porque sou mulher, mas tenho certeza que escrevo o que escrevo porque sou mulher.” Com essa frase, a patrona da 57ª Feira do Livro de Porto Alegre explica uma outra frase, dita quando soube que ocuparia o cargo. Assim que o nome de Jane Tutikian foi revelado, a escritora disse “Mulheres, cheguei!”. Numa manhã de setembro de 2011, ano em que uma mulher passou a ocupar a presidência do Brasil e poucos meses após outra mulher ter sido eleita presidente do FMI, a declaração talvez soe redundante. Mas, no contexto da Feira do Livro, as palavras de Jane ecoam uma grande disparidade.

Em todos os 57 anos de feira, apenas três mulheres ocuparam o patronato (Maria Dinorah do Prado, em 1989; Lya Luft, em 1996; e Patrícia Bins, em1998). Jane Tutikian é a quarta representante feminina do cargo e a primeira do século XXI. Para a escritora, não se trata de discriminação. A ascensão das mulheres a posições de maior destaque é resultado da própria mudança da sociedade. Como acadêmica – Jane é pós-doutora na área de Literatura e leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – um dos focos de seus estudos é a questão das identidades culturais. De acordo com essa linha de pesquisa, diversas “minorias” tem conquistado mais espaço em termos de expressão cultural, social e política.

É nesse sentido que a patrona encerra essa parte da conversa com ainda outra frase: “Eu não sei para que serviria uma literatura que não pudesse falar por aqueles que não podem falar.” A entrevista completa, cheia de outras idéias interessantes, vai ao ar na próxima segunda-feira, às 22h, no Jornal da Câmara. Palavra de mulher: eu não perderia.

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O texto foi publicado originalmente no blog da TV Câmara de Porto Alegre, canal 16 da NET.
Foi uma honra entrevistar Jane Tutikian!

Onde eu estava

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Todo mundo está falando disso. Todo mundo está pensando nisso. Todo mundo lembra. E quem não lembra (nunca se sabe, as pessoas podem ter sensos de prioridade bem estranhos) já foi forçado a produzir algum tipo de memória devido à cobertura midiática incessante sobre os dez anos do 11 de setembro. Eu lembro naturalmente – e lembro quase todos os dias.

Naquela terça-feira de 2001 a internet não era nada ubíqua, muito menos em Santa Cruz do Sul. E o sistema educacional era, talvez, mais burro e fechado do que é hoje. Ninguém nos falou nada. Os alunos saíram ao meio-dia do Colégio Marista São Luís como se nada tivesse acontecido. Só vi as imagens do absurdo quando cheguei à lanchonete da esquina para pegar um sanduíche. Para mim, estava começando a terceira guerra mundial, mas ninguém dava muita bola para a tevezinha do bar.

Voltei para a sala do Grêmio Estudantil e, sob protesto dos meus colegas, consegui sintonizar a Rádio Gaúcha – o pessoal do ensino médio não era muito afeito a notícias. Aí comecei a entender a grandeza do evento. Estávamos organizando um evento do colégio, então eu ficaria até à noite por lá. Mas confesso que demorei mais do que o necessário para voltar para casa. Eu já sabia que, mesmo de uma forma muito inofensiva, eu me somava àqueles cujos sonhos foram destruídos junto com as torres.

Quando coloquei o pé em casa, minha mãe tinha todo o discurso pronto. O intercâmbio para os Estados Unidos, cujo pagamento começaria naquela semana, foi cancelado sem oportunidade para argumentação. Como lembrança fúnebre da morte dos meus planos, guardo ainda a edição de 12 de setembro de 2001 da Zero Hora. E, no dia 11 do ano seguinte, transformei uma crise de rinite em uma gripe bem convincente para faltar aula e passar o dia assistindo à CNN. Descullpe aí, mãe, mas se mais alguma coisa acontecesse, não ia ser uma chata aula de matemática a me impedir de saber.

Hoje sigo o mesmo ritual. Por motivos acadêmicos, estou dividindo o zapping entre a CNN e a Globonews. Mas duvido que, se não houvesse uma dissertação a fazer, eu faria diferente neste domingo. Já fui aos Estados Unidos, já vi com os próprios olhos a reconstrução do Ground Zero. A sensação de previsibilidade, no entanto, nunca se restituiu. O mundo mudou, eu mudei junto e espero, um dia, contribuir para a compreensão dessa condição (pós-moderna?) fragmentada, desorientada e apreensiva em que vivemos.

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Do you know what it means?

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Para mim, que tento estudar os imaginários, há vezes em que essa construção quase inconsciente é a única explicação racional para as coisas inexplicáveis da vida. A minha adoração por New Orleans, por exemplo. Desde que me entendo por gente, esquinas musicais e enormes casas com sótãos estilosos ocupam minha mente. E a angústia, depois do Katrina, de pensar que nunca conheceria a cidade só podia parecer ridícula para uma menina do sul do Brasil, sem passaporte nem visto, com apenas uns discos da Mahalia Jackson e do Louis Armstrong na estante.

Mas, como disse a minha mãe, tudo se ajeita. E aconteceu de a minha estréia no universo acadêmico internacional se dar justamente na Crescent City. De repente, em meio à confusão de fim de semestre, eu caminhava na beira do rio Mississipi num entardecer de domingo. E ao mesmo tempo em que era tudo novidade – os beignets, os bondes, os boêmios -, andar por aquelas ruas de nomes afrancesados era como voltar à cidade natal.

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Talvez o voodoo explique, talvez seja um déja-vu de uma vida não passada. Mas é provável que seja mesmo algo da alçada de autores como Stuart Hall, Durand, Canclini ou Canevacci. Algo das imagens guardadas no fundo da alma, da identidade construída a partir desses pseudo-sonhos, ilusões de realidade. E, é claro, a gente tende a ver o que quer ver para confirmar o que já pensa. Então, aqueles sopros ritmados grudaram nos meus ouvidos como a umidade grudou nos meus cabelos.

Se eu fechar os olhos e bater de leve com os dedos no ar, ainda ouço os graves do Sr. Armstrong ao longe, naquela versão em que é acompanhado por Billie Holiday, a descrever as magnólias e a brisa do rio. Ainda vejo as ruas molhadas depois da terceira pancada de chuva do dia, as poças iluminadas pelos reflexos dos postes na Jackson Square. E, caminhando um pouco até a Royal Street, as senhoras nas sacadas com ornamentos de ferro elogiam meu vestido enquanto um senhor galante tira o chapéu e suspira: “Morning, maam! You’re a pretty lady.”.

É tudo um sonho, uma memória antiga, uma invenção do imaginário. Mas as novas lembranças se misturam agora aos desejos de infância para confirmar uma certeza: eu sempre soube o que significa ter saudade de New Orleans.

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De volta ao sonho americano

O meu primeiro retorno aos Estados Unidos depois de conhecer a terra dos livres e o lar dos bravos, começou com mais cara de pesadelo do que de sonho. Primeiro por culpa do próprio Brasil e do seu eterno amadorismo. Fiquei em torno de quatro horas no aeroporto internacional Galeão, no Rio de Janeiro (lembre-se: a mais turística cidade brasileira, ao menos aos olhos dos estrangeiros), sem conexão wi-fi e com uma única mísera lanchonete, daquelas que atende no clima “tem, mas acabou”.

Já irritada, na hora de embarcar revejo aquele americano estranhíssimo que estava no check-in. Um legítimo exemplar da categoria WASPP: branquelo, quase careca, meio gordo, desengonçado, vestido como o primo caipira do Pato Donald e com feições ligeiramente psicopatas. Peço a Deus que tal criatura não se sente ao meu lado. Mas, nessas horas, Deus não é brasileiro. Quando me acomodo na poltrona, o sujeito se apresenta e pede que eu lhe confira umas cotoveladas se ele por acaso roncar.

Como se não bastasse, percebo de imediato que a U.S. Airways não é nada parecida com a American Airlines. Nada de monitores individuais, apenas uma tela por classe e fones de ouvido a cinco dólares (e a tarifa nem foi tão mais barata). Tento ler alguma coisa, mas o pessoal da excursão para a Disney já grita como se tivesse avistado um Mickey gigante. Quando começa o filme sobre uma adolescente surfista que perde o braço devido ao ataque de um tubarão – mas, mesmo assim, recupera a força de vontade e continua surfando -, decido que é hora de dormir.

E durmo. Aos trancos e barrancos, espremida pela pança do branquelo caipira e com as pernas inchadas, mas durmo. E sonho com o sonho americano. Se ele ainda existir, de alguma forma, vamos nos encontrar em New Orleans. Acordo a tempo de ver o amanhecer sobre Charlotte, na Carolina do Norte. Falta ainda um vôo, um ou dois agentes da alfândega e uma inspeção no raio-X. Mas os corredores já são limpos, as placas efetivamente explicativas e os funcionários educados. De alguma forma, o sonho já (re)começou.

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