Participações

5 11 2007

Storm, edição 35 – Novembro- Dezembro – 2007 

Storm , edição 34 – Setembro – Outubro – 2007





A loja de pianos

30 05 2007

Cada coisa acha feliz matrimónio na idade para que foi predestinada. Nisso não reside dúvida nem originalidade. Talvez por isso Fradique não tivesse desimpedido excepcional energia para mudanças uma vez elas serem aliciadas por épocas mais precoces em que as inocências, ainda, não foram perdidas e o mundo é matéria disponível e atractiva para aí se encetar transformação. Numa altura em que, ainda, se vêem nos moinhos, gigantes, um pouco antes de se desbaratar ânimo de Quixote e auferir úlcera de azeiteiro. É essa a altura de muda e não quando dela devia ter frutificado sementeira em cacho. Também, talvez, por isso a casa de Fradique permanecia naquilo que sempre fora sem aí se ver ciclópico ou hercúleo ente uma vez que sempre fora e seria azenha, ou melhor uma loja de pianos. Também os pianos eram aquilo de que não mudariam: gastos, desusadas carcaças sem préstimo além da decoração pois ao contrário da música encontra mais valor ela na forma do que no disponibilizar da função em condições ideais de utilização.
Em Fradique nunca desabrochou apetite ou habilidade, das que fazem os feitos grandiosos, para uma actividade mais aliciante do que a de negociar pianos sem valimento. Possivelmente por encontrar na idade impedimento para novas conquistas, do mesmo modo que burro velho não apreende novato pronunciar.
A loja dos pianos era a única realidade conhecida de Fradique fazendo-o imune à novidade e temente ao desconhecido – tal como os antigos mareantes capacitados da conclusão do mundo no terminar do horizonte –, muito embora a apreensão não os atrair a voltar costela ao risco transformando-o em aliciante imprescindível e não embaraçante da plumagem necessária para voos mais altos que, assim, permanecem em terra firme esperando o dia de amanhã que, sendo sempre melhor peca por nunca chegar.
Os anos passaram apressados, como se tivessem melhor sítio para onde ir, sem tempo para ver dar ponto sem nó. Fradique continuava com a pesquisa dos pianos. O piano é semelhante ao clavicórdio e ao cravo e conta duas versões modernas: o piano de cauda e o piano vertical. A monotonia das versões rivalizava, no entanto, com a diversidade do aparato em que Fradique os encontrava: afónicos, privados de oitavas, com armação e cordas laças, martelos desalinhados, com teclados desdentados, com pedais inutilizados e caixas de ressonância asmáticas.
Não eram pianos de pianistas consagrados como Sviatoslav Richter, Vladimir Horowitz, Hamilton Godoy, Wladyslaw Szpilman, Mozart, Chopin, Liszt, Tim Rice-Oxley ou Sergei Rachmaninoff. Mas de mãos moribundas de talento.
O trabalho de Fradique não fazia mossa na rotação do mundo. Não possuía aquela natureza especial que torna certos trabalhos capazes de fazerem a diferença. A terra continuaria a girar com o mesmo empenho mesmo se ele pusesse, como é prática dizer, os pés à parede e dissesse: «basta!».
Não possuía romantismo, ou atractivo particular a laboração de Fradique. Não acontecia, como sucede com certos objectos cuja banalidade da sua função é extravasada por uma luminância, coloração ou sonido que o fazem passar a fronteira do comum para entrar num pequeno grupo de eleitos, de difícil acesso, cujas características são apreciadas pela sua singularidade. Pois é sabido que o ‘único’ é uma propriedade cobiçada como uma espécie de ouro de brilho vivo que sobressai até ao olho com menos apetite pelo diferente.
Não tinha a loja de pianos propriedade, de miolo, semelhante ao descrito. Era exíguo o seu encanto que emparelhava, perfeitamente, com o mirrado das suas dimensões, num par mais irrepreensível do que Fred Astaire e Ginger Rogers ou Laurel e Hardy.
Dava-se com a loja de Fradique o que acontece em África com os elefantes, pelo menos quando existiam em quantidade bastante para manter um instinto – sobrevivente como a tradição se existirem elementos em cifra suficiente para o perpetuar –, que quando pressentiam a morte se encaminhavam como se tivessem uma bússola interna para um local que a espécie escolhera, há séculos, para morrer. A loja era o sítio que parecia ter sido preferido como derradeira domicílio para pianos exangues.
Foi, porém, quando Fradique foi a casa de uma determinada família alemã que tudo tomou um renovado trilho. Pelo menos na sua cabeça. Ia preparado, como sempre, para comunicar uma proposta desvalorizada pelo piano que lhe tinham anunciado. Porquanto quando se compra o defeito até se inventa. A família mudara-se recentemente da Baviera para Lisboa trazendo consigo o instrumento, uma antiguidade que permanecia na família há tantas gerações que se lhe perdera a contabilidade. Fradique circunda o piano. Olha-o, por raso, nas miudezas. Abaixado para não lhe escapar pestilência. De cima para lhe apreciar coloração. Bate-lhe na madeira para lhe investigar caruncho. Toca-lhe nas teclas para lhe perceber refinação. Numa dessas incursões apercebe-se dumas iniciais gravadas no dorso do piano: L.V.B. Estaca. O seu espírito perde-se em lucubrações. A partir dali de pouco lhe valerá. Seria possível?
Ludwig Van Beethoven? Recusando antever o óbvio, ou seja a improbabilidade daquele ser o piano do compositor, Fradique confirma para si a identidade das iniciais gravadas uma vez que já cegara em si a capacidade de discernir com tino os factos. Sim, Ludwig Van Beethoven. Aquela era o piano de Ludwig Van Beethoven. Afinal, a família era antiga, abastada e alemã. Fradique percebe que se pode muito bem escrever direito por linhas tornas e que aquela descoberta, embora provocada pela coincidência, teria influência fulcral no seu destino compensando-o dos anos desperdiçados numa loja bafienta de pianos. E leve é a dor que o siso encobre. Ou, naquele caso, a falta dele. Na sua cabeça comprovava-se que, mais uma vez, certa nomenclatura de acontecimentos permite que a realidade ultrapasse, em muito, a ficção mais ousada.
Fradique desconhecia, no entanto, a história de Leopoldo Vaz Boaventura o filho da governanta da família que um quarto de século antes tinha pelo seu punho estampado as sua iniciais no piano o que valera à sua mãe o despedimento e a ele uma valente sova. Mas talvez isso, também, não lhe importasse muito uma vez que, em certas alturas, vive em nós um talento imensurável para justificar o indefensável. E a ignorância pode ser má conselheira até porque, no fim a verdade vence, o que a faz desventurada de virtudes mas se dos enganos vivem os escrivães porque não, também, felicidade semelhante para quem tem uma loja de pianos.





Na casa de Deus não se entra descalço

17 05 2007

Avestidura era equiparável aos modos: elementar. O mirar justo como o espírito. As vistas, embora vencidas pelo interesse que se presta à intelecção do mundo, estavam apeadas do alfabeto. Não que lhes incomodasse rachadura na íris que impossibilitasse o trato com as letras. Antes uma certa miopia que se reserva desenvolvimento por aquele ser jargão só perceptível para corpo adequado para a sagacidade, o que se impossibilita por berço aos espíritos fadados a roer côdea.
Mas, ainda assim, isso não o impedia de entender a humanidade, compreendia-a até convinientemente. Sabia que ela não deseja vendilhões no seu templo e que por isso não devia cobiçar mais do que o que tinha na presença. Descomedida incumbência para tão insuficiente corporação.
Andava geralmente desferrado de calçado. Essa nudez era repreendida pelo restolho, insensível como o asfalto à pelintrice, que lhe desfraldava o couro sempre que pousava o traçado do seu calcanho, descalço, sobre si. Era uma espécie de vindicta pela ousadia de ele o calcar. O único par de sapatos que havia era de número emancipado ao seu palmo e meio de gente e que por isso ultrapassava em muito o seu pé em edificação. Sempre que o usava a sua medida agigantada e a vaga proporcionada pela ausência de meias trucidavam-lhe o calcanhar queimando-lhe os artelhos, deixando vislumbrar, se se dispusesse de atenção para isso, o alabastro da formatura óssea.
Os rigores de tal usufruto inviabilizavam a crescença prometida, pelo menos a breve trecho, mesmo que de mendinho vestígio de epiderme na periferia entregue às postulas. Apesar de tudo, a situação era preferível à inexistência de calçado. Muito embora o único proveito fosse a ligeireza do porte.
O traço único do seu par de sapatos fazia com que ele se adequasse, exclusivamente, para conjunturas de garantido e meritório interesse. De entre as cerimónias merecedoras da utilização consentânea de calçado sobreluziam os acontecimentos do aforamento religioso: missas e comunhões.
Durante demorado período discorreu que o Senhor tivesse desejo de ver os devotos devidamente calçados sempre que entravam no seu domicílio ou que se apresentassem a Si. Como os caminhos do Senhor são nebulosos e como ele tem móbil que a própria razão desconhece, nunca se questionou acerca da monta de entrar calçado para a homilia quando nos outros dias sentia sobre os pés nus o rendimento da Sua criação. Era isto numa altura em que se teve ainda tão pouco tempo para crescer que não se percebe porque é que se anda descalço na generalidade das datas e ao Domingo e na casa de Deus tem que se comparecer calçado.
Por razões várias das quais a contingência é ambiência dominante perdera-se de amores por uma mulher, ainda em formação, cuja mácula maior sabida, e na verdade única, era viver a caudalosos quilómetros de distância, condição essa compensada, largamente, pela sua beleza bucólica que serviria de modelo de Boticelli para o provir da Vénus caso fosse sua contemporânea. Uma bicicleta de dois rodados enviesados feita mais de boa querença do que acessórios ideais catapultava-o para ela. Extravasava maleitas velocipédicas múltiplas: um enfisema pneumático, reumatismo nos travões, uma campainha afónica, um selim flácido. O que não daria por um bife que lhe empanturrasse a genica, servindo-lhe de elemento impulsor investido na pedaleira e que lhe gerasse movimento extra.
Apesar de tudo, o optimismo levava-o a imaginar o seu veículo desfalcado com propriedades ideais. Afinal, a imaginação quando quer também sabe ser generosa. E o faz de conta salva de qualquer posição mais delicada o desventurado permitindo não só que ele trapaceie a desilusão como, ainda, enfrente corajoso qualquer dificuldade.
Era, portanto, feliz, embora se possa ver nessa felicidade certo estado de ilusão próprio de bodo para pobres. A contrariedade surgiu ia a década a meio em forma de convocação por edital para uma contenda de latitude africana da qual desconhecia interesses e partes envolvidas. A solicitação, que não exigia vocação guerreira, por ser pouco rigorosa em exigências recusava senão. A sorte acabara por lhe ser madrasta mesmo para alguém a quem nunca se tinha afeiçoado. Mas não seria essa falta que a tornaria mãe extremosa. O chão mesmo que rasteiro acabara por o desamparar. Tombou volvidos seis meses sobre ele sem possibilidade de voltar a arrebitar.
Da namorada nada se sabe. No entanto, diz quem o viu que no dia do seu funeral assomava da mortalha trajando fato limpo e engomado e sapato de verniz fúlgido. Apresentava-se ao seu destino calçado. Não era de estranhar pois tinha aprendido, fazia anos, uma verdade insofismável: na casa do Senhor não se entra com pé descalço.





A importância do nome

13 05 2007

“Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens.”
Livro das evidências

Dá licença?, vociferou impetuoso o homem com a celeridade de quem cuida colher pai da forca.
– Ouviu? Importa-se de arredar o carro?
A solicitação bem poderia ter tido elaboração retórica mas tinha, entretanto, transposto a estrema da repreensão.
W. contrariou o reparo com silêncio. Sabendo-o, quando devidamente apreciado, de ouro seria para ele – que não possuía saldo supra zero – via exclusiva para dele se acercar. Não impressionou ao outro, no entanto, o apanágio aurífero da sua indiferença conquanto pôs a prazo a sua permanência no local ameaçando-o com a autoridade.
– Não ouve?, voltou a inquirir. Em W. não fez, todavia, a duplicação sobressair temor.
Não lhe era, também, visível característica estranha, membro extra, órgão acrescido ou apêndice. Não era criatura cuspida da humanidade por ter índole ou propósito aberrante, irrelevante ou inconveniente. Era um indivíduo vulgar mas que pelo trato se percebia de modo não banal e no qual pesava sobre a espádua o ónus de graça herdada, que lhe acentuava a curvatura lombar não pela gravidade da letra mas pelo encargo devido ao imposto da tradição imputada.
Ao nome identifica-se possibilidade de ser de guerra e reconhece-se ser lento no despontar do peso. Para W. era, igualmente, única propriedade de valia.
A sua linhagem que, como se costuma dizer, lanchava presentemente capim pela raiz por genérico falecimento tivera, nos idos 1900, riqueza apreciada em muitos contos de réis que o tempo e o moderado engenho para o negócio colocariam no carreiro do enxovalho económico.
Anos antes W. domiciliara numa casa de transmissão pretérita na mesma rua, a que agora embaraçava o escoamento num provecto edifício actualmente património do Ministério da Economia. Após a sua demissão de uma instituição financeira, onde trabalhava, por defraudamento congénere ao de Alves dos Reis, através da mala holandesa, a casa capitulou às mãos do Banco de Portugal e ele, após insistência na mercancia de café, nas da justiça.
Em W. raramente se percebia actividade certa. Ao que se dedicava convinha melhor o diz que disse do que afazer efectivo. Fixou-se no sul das Américas. Na Argentina, onde vivia de expedientes, que é uma forma a que carece confirmação de êxito seguro para o assegurar de subsistência. Mais tarde em época de embeiçamento brasiliense tornou-se amigo de ministros e secretários de estado, sobretudo do secretário de estado do Tesouro, cuja mãe, uma dama de felpa grisalha basta, lhe empresta o regaço e dinheiro sem retorno anunciado. Ambos cursam, regularmente, num botequim com cadeiras de quadril de bambu caduco, nas quais enlaçam conversas de filosofia de alcova.
Segue-se uma associação profícua com um fulano de desfastio avaro pela diversão, descendente de fazendeiro abonado que conquistaria para a bancarrota a economia familiar na qual W. se viria abrangido.
Após o divórcio que se seguiu a essa fase, W. voltou a Portugal. Nesse tempo não subia no elevador em horário frequentado por subalternos. O futuro fugira-lhe, irremediavelmente, no dia em que perdera a intendência sobre as suas loucuras e acabara agarrado nas teias da lei que não se compadeceu com a sua vocação de intrujão.
– Importa-se de desviar o carro? Não ouve?
De W. nem palavra. Temia uma investida de arrivistas que lhe sonegassem aquele estacionamento irrepreensível, mergulhado numa sombra cujo porte era ideal para a custódia de víveres que permaneciam nela como se estivessem numa arca frigorífica à temperatura ideal para a refrigeração.
O barão que servia de poleiro a uma centúria de pombos latagões em genuíno desvario de acasalamento observava-o, teso no bronze que lhe prendia os gestos imóveis pelos contornos estatuários. Para além dele e de umas quantas mães coragem, as suas cercanias eram estabelecidas por parceiros de dominó e leitores de periódicos, cujos ares de literato rivalizavam em galarim com o emplumado das aves estacionadas na estátua do barão.
Era isto pelas dezassete horas. Que, como é sabido, é tempo de correcção irrepreensível para o chá. A hora permitia perceber o apuro dos funcionários do café e a dificuldade em conviverem com a presença de W. e a sua viatura, em segunda fila, uma vez que o ritual das infusões não se compadece com procedimentos ocupacionais, mesmo de alguém de proeminente berço e correspondente passado e apelido como W..
– Importa-se de afastar o carrinho?, repetiu o funcionário.
– Tenho de chamar a polícia?
W. permaneceu imperturbável. Retocou o vinco das calças – extraviado desde 1975 quando comemoraram as bodas de ouro – que envergava. Esmerou-se no traçar de perna que fazia, pela perfeição do ângulo conseguido, sobressair o turco das meias que calçavam uns sapatos cujo verniz, ao contrário de qualquer capitão de embarcação que se preze, os tinha abandonado na primeira oportunidade.
O carrinho de W. parecia prestes a ver expelidos do abdómen os sacos que transportava e que eram em contabilidade suficiente para plastificar franca superfície enquanto o demo esfrega uma vista e refrega a outra. W., a quem nem o nome – embora de monta – destituíra os interiores da fome estava ali por o estômago lho ter exigido. Devido à escassez de conduto no bojo. W., que rapidamente anuiu ao pedido deste, emprestou equivalente celeridade ao fazer-se chegar ao local. Mal aportou ao sítio anunciou, imediatamente, a sua intenção de se ver servido de uma carcaça exemplarmente impermeabilizada a manteiga de superior qualidade que diluiria com o auxílio de tisana apropriada. Não aceitaria reles côdea sem préstimo alimentar para o seu exigente papo. Mas vendo agora volvidos três quartos de hora sobre o seu pedido, percebeu que não seria esse o desfecho. E ao ver aproximar-se de si e do seu carrinho farto em cartão canelado e cobertores, dois agentes percebeu que os epílogos para as acções têm regras que ultrapassam a vontade do autor. Percebia, agora, enquanto ziguezagueava com o carro de compras deduzido ao hipermercado, que o nome embora importe, alicia atenção devido a quem o usa. Talvez até para nome importante se exija merecimento apropriado. E, afinal, a única coisa que conseguira com o seu talento fora o crédito de o sujar. W. morreu poucos dias depois. Quem o encontrou ao estudar a fotografia do bilhete de identidade, burlado pela antiguidade, pensou não tratar-se dele concluindo tratar-se de carteira subtraída. A sua campa pobre em inscrições tem um número, ano da morte e no sítio do nome apenas Zé-ninguém.





Melhor é não ir em modas

10 05 2007

“A moda é feita para passar de moda.”
Coco Chanel

M.Hermann era alguém a quem as modas pouco impressionavam. Não havia nelas nada que lhe importasse. Queixava-se da dificuldade em as acompanhar. Preferia por isso o passado que, inevitavelmente, permanecia sem mudar pelo que era mais fácil de seguir.
Talvez por isso ou por algo semelhante ou, pelo menos, aproximado M. Hermann vestia-se de uma forma estranha, pelo menos para a maioria das pessoas (maioritariamente mais influenciadas pela moda do que ele, inábil para lidar com a sua periodicidade fugaz).
Uma observação mais atenta permitia, todavia, perceber que não havia, porém, nada de bizarro na forma de M. Hermann se vestir. Ela era, simplesmente, desactualizada.
M. Hermann vestia-se como em épocas anteriores à sua, o que lhe dava um ar desfasado mas não estranho, uma vez que não usava nenhuma forma anormal de vestuário (como uso de peças invulgares, aberrantes ou ridículas), apenas inapropriada temporalmente. Vestia-se anacronicamente. E nisso não há estranheza.
Certo dia M. Hermann resolveu comprar uns sapatos novos para substituir uns do início do século XX completamente desgastados, de que até ali não se conseguira desfazer.
Dirigiu-se a uma loja de moda especializada em calçado, uma vez que a sapataria da sua rua não lhe dava garantias de conseguir o que pretendia: outros sapatos do início do século XX.
A loja era construída com base nos pressupostos de venda do século XXI, respeitando por isso as preferências desse século ainda acabado de estrear. Estava situada numa rua, também, especializada nessa área. Encontrava-se dividida em átrios (norte, sul, este, oeste), áreas (A, B, C até Z) – agrupadas por géneros de calçado, modelos, marcas, tamanhos, cores, por sexo, estação e idade – pisos (num total de quinze), estantes (cinquenta mil) e gavetas (seiscentas mil).
Todo o edifício era administrado por duzentos e um funcionários que zelavam pelos interesses da administração, clientes e associados.
Mal entrou, M. Hermann dirigiu-se ao funcionário responsável pelo átrio 1A questionando-o quanto ao sítio onde poderia encontrar uns sapatos para si.
Depois de lhe perguntar pelo número, marca, tipo, material e fim que iriam ter os sapatos, o funcionário resolveu encaminhá-lo para o colega que aconselhava os compradores na demanda do calçado ideal. Este, depois de analisar o seu pé, facultou-lhe mostruários, fez-lhe sugestões e tudo parecia bem encaminhado até que tudo se complicou quando M. Hermann disse que desejava uns sapatos do início do século XX, o que chocava com a política da empresa exclusivamente vocacionada para calçado do século XXI. Resolvido a demover M. Hermann do seu gosto por sapatos do início do século XX (completamente fora de moda e autênticos objectos de colecção), pelo telefone o funcionário que o atendia chamou um companheiro, habilitado especialmente para casos em que o freguês era imune a modismos, para lhe apresentar argumentos que o fizessem perceber a importância da moda na vida das pessoas. Sem ter conhecimento de nada, M. Hermann pensou ao ver o sujeito ao telefone que ele tentava encontrar nos armazéns da loja o modelo pretendido. Percebeu pelo que se seguiu que não. Ao chegar junto de M. Hermann o indivíduo habilitado especialmente para casos em que o cliente era isento de modismos, responsável pelo piso 10, apresentou-se e cumprimentou-o. Não havendo informações concretas acerca da conversa dos dois sabe-se que estiveram juntos não mais do que seis minutos. Sobre o que falaram podemos apenas especular. No entanto, M. Hermann continuou a desejar os mesmos sapatos por isso não é difícil perceber o que sucedeu. O sujeito voltou para o piso 10 com o problema por resolver.
Provavelmente enviado pelo sujeito habilitado especialmente para casos em que o freguês era imune a modismos, outro indivíduo acercou-se de M. Hermann para o convidar a visitar a loja na esperança de que ele encontrasse outro modelo que lhe interessasse. M. Hermann viu cerca de trinta e cinco modelos de sapatos, de formatos, tonalidades e estilos distintos. Nenhum lhe agradou.
Contactado pelo funcionário com quem M. Hermann visitou o estabelecimento outro indivíduo (responsável pela área C do piso 7) aproximou-se de M. Hermann para lhe perguntar se, uma vez que não gostava de nenhum dos sapatos da loja, estaria interessado em que lhe fizessem uma cópia exacta dos que possuía, respeitando técnicas, materiais e desenho da altura. M. Hermann que, entretanto, se resignara, à evidência de que nunca iria encontrar sapatos iguais aos seus ficou exultante com aquela possibilidade e concordou de imediato. Um problema se colocava, porém, os sapatos teriam de ficar na loja para fazer medições, apurar metodologias, tudo o que conduzisse a uma réplica exacta. M. Hermann viu-se, assim, forçado a utilizar uns sapatos que a loja disponibilizava para situações como a dele, uma vez que não podia ir descalço para casa. Olhou desconfiado para os sapatos que o funcionário responsável pela área W do piso 3 lhe entregara como substitutos. Ao sair da loja reparou que os sapatos eram bem mais confortáveis do que os seus. A cor, também, não lhe desagradava. Ía até bem com o que trazia vestido. Várias pessoas conhecidas que se cruzaram com ele elogiaram-lhe a troca estranhando a inovação. Mal chegou a casa M. Hermann telefonou para a loja e falou com o responsável pelas reproduções de modelos indisponíveis na loja, a trabalhar no piso 13. Anulou a encomenda. No dia seguinte pagou os sapatos do século XXI que levara emprestados com que ficou. Desde esse dia nunca mais deixou de os usar. O respeito das tendências exige alguns sacrifícios. Os sapatos caíram em desuso volvidos dois meses. M. Hermann andava finalmente na moda.





Sobre a importância de se falar sobre o que se sabe

9 05 2007

“Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.”
Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus

Um amigo de um amigo de outro amigo de M. Hermann, com queixo duplo e barriga tripla citava sempre o mesmo livro do qual só conhecia metade das páginas ou, na melhor das hipóteses, dois terços. Não era caso raro, sabendo-se existir número significativo de leitores com essa propensão independentemente da capa, formato, autor ou conteúdo das brochuras com que contactam.
M. Hermann conhecia outras pessoas de citação única e de livros que só avaliavam pela metade ou na melhor das hipóteses dois terços do seu conteúdo. Ainda que nem todos fossem seus amigos ou amigos de amigos.
Ora, é sabido que os livros têm umas partes melhores e outras piores pelo que conhecê-los sem ser na íntegra é sempre um risco. Podemos sempre apanhar um terço mau ou uma metade ainda pior. Maior o sufoco quando se aproveita para citação esse pouco. Mas o amigo do amigo de outro amigo de M. Hermann aconselhava o seu único livro, do qual conhecia entre a metade e dois terços do seu conteúdo, como se fosse preferível a todos os outros. Não o era, provavelmente. Ainda assim era esse que aconselhava. Era natural, uma vez que era o único que tinha lido. E só devemos falar daquilo que conhecemos. Mais não seja para não sermos apanhados desprevenidos por uma tese traiçoeira. Embora o homem em questão não estivesse, totalmente, livre desse embaraço por poder ser questionado sobre parte nunca lida continuou a citar o seu livro.
A juntar ao seu gosto pela citação de um livro de que só conhecia metade ou no máximo dois terços, deste acrescia o gosto do amigo de um amigo de outro amigo de M. Hermann ler na diagonal o que fazia com que grande parte da extensão do livro ficasse por ler, o que não ocorreria se respeitasse os trâmites de leitura em vigor de tradição mais horizontalizada.
O amigo de um amigo de outro amigo de M. Hermann de citação única de um livro de que só conhecia metade ou no máximo dois terços a que se juntava a particularidade de ler na diagonal tinha um problema grave de concentração. Fora-lhe diagnosticado, um défice de atenção – por um indivíduo que se viu na contingência de ter de ler livros de medicina na totalidade para poder ser médico – que o impedia de apurar o sentido a parágrafos completos pelo que se ficava por frases curtas. Tendo em consideração as características da leitura do indivíduo fazendo as contas necessárias – usando o número total de páginas como referência, atribuindo índices baseados nos atributos do seu modo de ler e sabendo que o número de páginas lidas deixaria sempre de fora pelo menos um terço da paginação – alguém concluiu que ele se limitava a citar o título da obra que lera. Mas porque citará ele só um livro se se limita a alvitrar o título?, perguntaram todas as pessoas que tomaram conta da situação – algumas das quais reconhecidas por serem de citação, também, pouco generosa –, bastar-lhe-ia passar os olhos por qualquer estante pelas lombadas dos volumes aí existentes para retirar daí citações em maior quantidade. Alguém que não era amigo de M. Hermann mas que privava, frequentemente, com aquela criatura resolveu, porém, o mistério. A biblioteca do sujeito era de exemplar único. E, afinal, só se deve falar sobre o que se sabe.





Personalidades complexas ou o problema das rectas

8 05 2007

M.Hermann tinha uma personalidade complexa. Certas crianças nascem com cabelo farto ou principiar de dentição. M. Hermann não surgiu com nenhuma dessas características. Nasceu com uma personalidade complexa, apesar de só o ter percebido aos dezoito anos, cinco meses e seis dias quando um sujeito de personalidade simples lho disse. Ainda que tivesse uma personalidade complexa M. Hermann admitia nos outros o óbvio, não vendo nisso embaraço para o carácter provavelmente por ter sido uma pessoa de personalidade simples que lhe dissera que ele possuía uma personalidade complexa.
As pessoas com personalidade complexa não são diferentes da vulgar criatura. Essas são as pessoas extravagantes. Mas M. Hermann não o era, embora tivesse tido essa tentação em 1998 por causa de uma namorada excêntrica. Como a namorada excêntrica casou com um anterior pretendente – esse sim excêntrico – M. Hermann resolveu manter-se fiel à sua personalidade complexa, por si só já rigorosa nos requisitos. Isso nem sempre se demonstrou uma boa opção se pensarmos, por exemplo, que não existem lojas habilitadas para pessoas com personalidades complexas e é possível encontrar, em contrapartida, certos locais com produtos exóticos para pessoas extravagantes.
Ora as pessoas com personalidade complexa são conhecidas por terem comportamentos e gostos próprios de personalidades complexas como acontece, aliás, com os indivíduos de personalidade comum conhecidos por terem comportamentos e gostos próprios de personalidades comuns. Tal sucedia com M. Hermann conquanto, também, se lhe conhecesse atitudes e gostos de pessoas exigentes (com atributos próprios mas não contradizendo os das personalidades complexas). Feita esta ressalva – que como todas as ressalvas se demonstrará útil no futuro – não é difícil perceber que M. Hermann tivesse uma postura adequada à sua personalidade complexa barra exigente (salvaguardando ter esta última propriedade menor volumetria em confrontação com a complexidade).
O habitual era, de acordo com a personalidade complexa de M. Hermann, pouco prometedor. Optava, por isso, pela irregularidade e não pela rotina. Preferia ir à origem das coisas antes de passar, de imediato, para a conclusão. Preocupava-se com a causa antes de cismar com o efeito.
Devido ao seu complicado temperamento M. Hermann nunca escolhia o caminho mais directo para as coisas. Sucede assim com as pessoas de personalidade complexa, especialmente se também forem exigentes (mesmo que levemente). Pensava nas rectas que nunca se encontram, embora caminhem paralelamente, e isso assustava-o. Preferia o zig zag. Mesmo correndo o risco dos trocar, tomando o zig quando devia preferir o zag e este quando importava mais o zig. O caminho mais longo parecia-lhe mais cheio de possibilidades. Ainda que a longa distância seja mais propícia a enganos que a curta e, por essa razão, tornando mais fácil as pessoas perderem o norte ainda para mais não havendo mapas especiais para pessoas de personalidade complexa. Valia o risco. Talvez isso explique o facto de nunca mais ter sido visto desde o dia em que saiu para comprar laranjas na mercearia da sua rua, conhecida pela sua simplicidade e laranjas importadas da Califórnia. Tentem nos EUA.





Sorte, azar e justiça divina

4 05 2007

Na televisão contavam a história de um indivíduo que gostava de tentar a sorte. Não há nisso nada de anormal. Muita gente o faz, pensou M. Hermann enquanto assentava uma chave: 23 – 45 – 34 – 12 – 7 – 11 – 40. O homem jogava regularmente na lotaria utilizando um sistema matemático altamente aleatório que seleccionava os números que deveria de usar dentro de uma lógica irracional, a que se chama intuição. Construíra para isso uma máquina complicadíssima, única no mundo, que ao contrário das suas irmãs mecânicas possuía instinto. O homem baseava o seu procedimento na convicção de que como deus não joga aos dados, ele o poderia bater num terreno que não era o seu. Uma vez que se tratava do chão pantanoso da sorte e como se sabe essa não é uma matéria que interesse a deus pois todos os seus desígnios, mesmo os mais misteriosos, têm na sua génese uma necessidade própria e isenta de acaso. Após várias tentativas, o homem acabou por ganhar o primeiro prémio da lotaria nacional. Por sorte, disseram na altura. No entanto, quando foi feito o sorteio em que ele saiu como vencedor o homem estava morto pois falecera durante a noite de causa desconhecida mas nem por isso menos letal. M. Hermann desligou a televisão e pensou: deus pode não jogar aos dados mas equilibra isso com justiça divina.





A pontualidade

2 05 2007

M.Hermann recebeu um pré-aviso ao aviso nº 5438 enviado pelo ministério 125 A-B, secção 1456C. Nestes casos tem-se 28 horas e 35 minutos impreterivelmente para resolver a situação. Teve, por isso, de ir tratar de uns impressos que o ministério 125 A-B, secção 1456C, lhe tinha solicitado. Dirigiu-se à repartição 124V na rua 46 norte. M. Hermann era, diga-se, extremamente pontual. Às 9 horas em ponto estava à porta da repartição 124V na rua 46 norte para entrar. A porta, no entanto, só se abriu às 9h10. M. Hermann que é pontual mas, também, curioso perguntou porquê, uma vez que o horário dizia expressamente «abertura às 9h». Porquê aquela falta de pontualidade? O funcionário nº 1453V respondeu-lhe que estava no local às 9h embora não tivesse aberto a porta uma vez que antes disso era preciso realizar algumas tarefas preliminares como: polir o balcão, vaporizar com ambientador o local e preparar-se psicologicamente para a sua tarefa – entregar e receber impressos. Agastado com a falta de visão de M. Hermann o funcionário disse-lhe que poderia preencher o impresso 897C ou 345B – caso achasse a questão grave ou muito grave – especialmente criado para reclamações daquele género. A sua reivindicação seria analisada num prazo nunca inferior a 6 meses e 12 horas e 15 minutos por um funcionário especialmente formado para esse efeito. A sua inscrição para reserva dos impressos seria a nº 26778.
M. Hermann não o fez, considerando que a pontualidade particular do indivíduo conjuntamente com a conversa com ele o tinham atrasado e acabaria por perder o autocarro 45 que, esse sim, nunca se atrasava ou pelo menos regulava-se por uma pontualidade que percebia. Pensou que se aquele fosse um procedimento normal no mundo, aquele tipo de pontualidade exigia que se atrasasse os relógios em 10 minutos ou que se inventasse um tipo especial que fizesse automaticamente essa subtracção, para manter a pontualidade habitual ou ela desapareceria. Passou a dirigir-se à repartição 125V na rua 49 sul, conhecida por ser mais condescendente com os prazos, para resolver os seus problemas.





Normalidade

28 04 2007

Um familiar de M. Hermann teve uma doença muito grave. Na altura toda a gente o tranquilizou, já que diziam que era uma coisa normal. Apesar disso, o familiar de M. Hermann acabou por morrer. Parece que para a clínica geral, ao contrário da psiquiatria, a normalidade não é relevante.





Os clientes de C. Khunz

20 04 2007

O número de sócio de C. Khunz na associação de barbeiros era o 5673.Não havia mais ninguém na associação de barbeiros com o número 5673 o que o tornava inconfundível. Embora isso só acontecesse por causa de um algarismo C. Khunz tinha nisso orgulho.
Apesar de só ser inconfundível por causa de um algarismo C. Khunz tinha características próprias. Começava a fazer a barba aos seus clientes sempre da esquerda para a direita. O cabelo cortava-o da direita para a esquerda. Demorava, exactamente, cinco minutos e meio a fazer uma barba e sete minutos e meio a cortar um cabelo. Independentemente do tamanho. Num bom dia C. Khunz gastava uma embalagem de creme de barbear. Num mau dia ficava-se pelos dois terços.
C. Khunz gastava mensalmente 150 caixas de lâminas de barbear, 6 frascos de after-shave e 10 de shampôo.
C. Khunz tinha 46 anos e a média de idades dos seus clientes era de 36 anos. Havia por isso uma diferença de 10 anos entre a sua idade e a média de idades dos seus clientes. 10 anos era, exactamente, o tempo que C. Khunz tinha a barbearia. Como na maioria das coincidências não havia muito a explicar.
C. Khunz tinha muitos clientes. Tinha um cliente que era músico e que era bastante reservado. Tinha outro que era actor e razoavelmente extrovertido. Outro que era agente artístico que umas vezes era tímido e discreto e outras expansivo e falador e que dizia ter familiares provenientes da família do Sr. La Palice que como se sabe quinze minutos antes de morrer, ainda, estava vivo. Havia, também, dois que eram amigos. Um – com baixa auto-estima – achava que a melhor perspectiva sobre as coisas era a dos outros e o outro – sem problemas de auto-estima – que achava que a melhor (e provavelmente única) perspectiva sobre as coisas era a sua.
Outro cliente, diferente de todos os outros, mas que recorria a C. Khunz pelas mesmas razões era, extremamente, metódico. Sempre que ía à barbearia pedia que C. Khunz lhe cortasse o seu cabelo debaixo para cima, da esquerda, para a direita e a barba no sentido inverso dos ponteiros o que era muito complicado para C. Khunz pois começava a fazer a barba aos seus clientes sempre da esquerda para a direita e o cabelo cortava-o da direita para a esquerda.
Um cliente que gostava de ser surpreendido solicitou-lhe que nunca lhe cortasse o cabelo da mesma maneira. Dava-lhe total liberdade para lho aparar segundo a sua inspiração, engenho e capacidade técnica. Da barbearia saiu com o cabelo com consistência cor e cortes estranhos, ridículos, emabaraçantes ousados mas nunca iguais. A ninguém pediu C. Khunz explicações pois como é sabido para o melhor e para o pior o cliente tem sempre razão.





Comparações e primeiras impressões

9 04 2007

Q uando C. Khunz abriu a barbearia muitos o compararam com o antigo dono cuja prática o tornara célebre a quarteirões de distância e procurado por pessoas de outras cidades que só em si depositavam confiança para lhes fazer a barba e cortar o cabelo. Foi muita a suspeita de que C. Khunz não estivesse à altura de semelhante herança. Os primeiros tempos não foram fáceis. Talvez porque tinha um problema que agora o prejudicava bastante: as primeiras impressões.
– «Nunca tive muito sucesso com a primeira impressão», dizia. Aliás, C. Khunz dava tudo para passar directamente para a seguinte.
– «Sou um tipo de segundas impressões. A primeira só me prejudica. Pressupõe cerimónia, cortesia e acatamento que não disponibilizo. Passava bem sem ela. Porque raio tem de haver primeira impressão? Porque raio tenho de arcar com as consequências de uma coisa em que não tenho responsabilidade? Dá-se demasiada importância à primeira impressão. A primeira impressão só favorece tipos como Valentino e eles existem numa relação de 0.4 Valentinos para 5879 C. Khunz’s. Devia existir um decreto que ilegalizasse o uso da primeira impressão. Que a tornasse obsoleta. Sem préstimo. Odiada. Votaria num partido que tivesse essa proposta. Mobilizaria todos os que sofressem do flagelo da primeira impressão. Seríamos muitos. Poucos a princípio, é certo, que ninguém gosta de admitir ser mau na primeira impressão mas o número aumentaria, até sermos mais dos que usufruem, há anos, da primeira impressão. Abaixo a primeira impressão. Viva a segunda, terceira ou quarta.» Esta era a posição de C. Khunz em relação à primeira impressão que pouco ou nada mudou ao longo dos anos.
No fim-de-semana da primeira semana de actividade da barbearia o jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz marcou três golos e foi considerado o melhor jogador da jornada. Durante a semana seguinte foi idolatrado por todos. Todos os jornais apresentaram artigos sobre ele e as televisões disputaram a sua comparência nos seus horários nobre. No fim-de-semana da segunda semana de actividade da barbearia o jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz foi expulso durante o jogo acom a equipa rival e foi considerado o pior jogador da jornada pela sua falta de desportivismo. No fim-de-semana da terceira semana de actividade da barbearia ninguém se lembrava do jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz.
No segundo mês de actividade C. Khunz tinha mais clientes do que o antigo dono da barbearia.





O código e a mensagem

30 03 2007

O código de barras foi considerado uma das grandes invenções do século XX, leu M. Hermann no jornal. Mais importante do que certas obras literárias, dizia na gazeta. M. Hermann concluiu que as pessoas preferem os códigos às mensagens. Apesar disso continuou a ler diariamente o seu jornal favorito. Dava-lhe mais prazer conhecer a informação do que perceber a semiótica. Quem lhe poderá levar a mal?





Dificuldades do choro

18 03 2007

M.Hermann ao contrário do seu amigo C. Khunz não era, propriamente, aquilo a que se chama uma pessoa emotiva. Muito pelo contrário. Faltavam-lhe características essenciais para o ser. E o ser é, como se sabe, bastante exigente requerendo, logo à partida, o poder ser. A M. Hermann falhava, provavelmente, dois terços do mínimo exigível para ser emotivo. E isso porque a emotividade tem graus, podendo o indivíduo ser, pelo menos, pouco emotivo, emotivo ou muito emotivo. M. Hermann estaria, na melhor das hipóteses, no patamar abaixo do indivíduo pouco emotivo. M. Hermann carecia para ser uma pessoa emotiva de quantidade de sentimentos correspondente. Em certa ocasião fez notar isso aos que o rodeavam e que não percebiam a sua natureza, nomeadamente a sua amiga Hanna C, ela uma criatura muito emotiva que não entendia a incapacidade de M. Hermann de se emocionar.
Talvez devido à sua indigência emocional (ou por outra razão menos evidente e pelo que foi dito agora a despropósito) durante anos M. Hermann nunca chorou. Isto embora, em algumas ocasiões, tivesse tido motivos para isso. Em situações muito numerosas até. E a quantidade, também, tem relação com as vezes que se chora sendo esta uma razão evidente para isso e pelo que foi dito sem vir agora a despropósito. Como quando partiu as duas pernas, lhe desapareceram todas as bagagens no aeroporto, ou lhe faleceu um amigo de infância. A certa altura M. Hermann, inexplicavelmente, começou a chorar e só parou decorridos três dias. Não percebeu porquê. Nem ninguém. Especialmente Hanna C., ela sim, uma pessoa emotiva. Afinal tinha acabado de receber o reembolso do IRS.





Chefe é chefe

12 03 2007

Hanna C. ansiava por ser chefe. Não tinha, no entanto, qualidades suficientes para isso uma vez que essa é uma função exigente em atributos. Faltavam-lhe, pelo menos, um quarto das características necessárias para chefiar.
Para chefiar são necessárias várias qualidades, ao contrário de ser chefiado cuja principal característica imprescindível é ser obediente.
Hanna C. respeitava os chefes e obedecia-lhes sem os questionar. Depositava neles grande confiança. Percebe-se por isso que possuía a principal propriedade para ser chefiado: ser obediente. Faltavam-lhe, porém, os elementos importantes para ser chefe. Demorou 5 anos a adquiri-los. Durante esse período nunca deixou de ser obediente. Se não o tivesse sido teria demorado 15 anos.