Atualmente é possível notar constantes disciplina e controle sobre a vida da população que permeiam até o lazer nos ditos tempos livres. Sendo assim, percebe-se que há uma obrigação social de utilizar os descansos (tempo não utilizado no trabalho) para fazer uma lista de coisas determinadas e dentro de tempo e espaço determinados para que sejam, de maneira ilusória, convenientes. Procura-se aqui seguir uma análise foucaultiana que apresenta a atuação de diversos poderes, através das mais simples ou complexas instituições, no cotidiano da atual massa individualizada.
Primeiramente, é importante compreender o que é “microfísica do poder”, ou seja, uma rede de instituições que exercem diferentes poderes, tais quais o Estado, a família, a escola, a mídia ou a indústria cultural, entre tantas outras. Todos os indivíduos passam a ser moldados por esta rede microfísica de poder e cada um passa a participar de determinadas instituições, sendo praticamente impossível que um indivíduo pertença ao mesmo grupo de instituições que outro. Dada tal condição, a população torna-se heterogênea e para que as ações do Estado atinjam cidadãos tão diferentes uns dos outros se faz necessário encontrar algo que ainda assim seja comum para estes. Este algo consiste na vida, a partir deste ponto o Estado passa a ter por dever a proteção e a garantia da vida da população. A este fato Foucault nomeia por Biopolítica. A prática, tanto da microfísica do poder como da Biopolítica, gera um saber sobre o modo de utilizar o poder. Em outras palavras, o constante exercício do poder serve para aprimorá-lo e permitir sua manutenção.
Desse modo, é possível entender que ao longo do tempo os indivíduos foram fabricados de modo que crescessem disciplinados e acostumados com a vigilância. Esta pode ser identificada tanta pelas onipresentes câmeras de vídeo (realça-se que sua implementação dentro do Metrô de São Paulo foi aplaudida, mesmo que isso signifique a monitoração dos usuários em qualquer momento), quanto pela indústria cultural, que é apoiada, legitimada e disseminada pela sociedade, que controla cada item de lazer que é acessado pelas pessoas. A fim de ilustrar, pensa-se que mesmo dentro do cinema alternativo há uma tendência a assistir os filmes provenientes do Leste Europeu em detrimento à produção sul-americana que não é vendida dentro do Brasil, por coincidência também um país da América do Sul.
Dessa forma, tendo em vista que os poderes institucionais marcam o cotidiano da sociedade, entende-se que os indivíduos passam a ter suas vontades, pouco a pouco, eliminadas por um forte poder disciplinar. É dessa forma, que as pessoas percebem que não sofrem coerção, já que não há mais vontades a serem coagidas. Isso, segundo Foucault, é uma realidade que garante o funcionamento do capitalismo. Explica-se que a evolução das formas de dominação é a evolução do capitalismo. Uma ideia sobretudo marcante é que tal dominação não é exercida apenas pela força física, mas também pela propaganda que estuda as relações entre indivíduos e utiliza as informações resultantes a serviço das elites estabelecidas no poder. Tem-se como exemplo, a expressão de “Revolução de 1964”, utilizada pela grande mídia para passar a impressão de que a ditadura militar foi uma alteração das relações político-econômicas, essencial para a posterior democratização do país. Este é outro termo que, por vezes, parece exagerar de forma otimista a situação política brasileira.
Portanto, pode-se entender que há um constante exercício dos poderes em todas as esferas da sociedade. Isso, segundo Foucault, serve para sustentar a organização capitalista, já que se estimula a docilização dos indivíduos e consumo dos produtos produzidos por eles. Isto pode ser exemplificado por uma frase do cantor Tom Zé que diz que os indivíduos urbanos, contemporâneos e ocidentais são “nascidos em loja.” Estes são ensinados, desde pequenos, a verem o Estado e o sistema capitalista através de uma perspectiva favorável. Além disso, há congratulações aos que seguem um caminho educacional e profissional que atenda às perspectivas do mercado. É com isso em vista que se industrializou o sistema educacional com cursos de tecnólogo e graduações em menor tempo, para que maior parte da população tivesse oportunidades de servir às empresas que requisitavam mão-de-obra com certo nível acadêmico.
Logo, a influência no cotidiano da população é tão marcante que se confunde horário de lazer com horário de obrigação. Daí a idéia de cursar idiomas estrangeiros em finais de semana e de comprar livros ou filmes para serem assistidos nas férias. Neste curto período, teoricamente dedicado totalmente ao lazer, há uma sensação compulsiva sobre o dever de assistir ou ler cada coisa que comprou, já que não há tempo para isso durante o ano laboral. Há uma curiosa relação entre oferta e demanda tanto de obrigações quanto de diversões que levam a um difuso limite entre lazer e trabalho. Tal lógica construída em um processo de internalização das normas de diversas instituições é feita com constantes pesquisas de marketing que criam um banco de dados sobre os gostos da maioria. É uma cultura dos sentidos que visa à produção em massa para vendas nos grandes centros urbanos. A fim de ilustrar, pensa-se nas capas de livros que variam de país para país, de modo que atraiam um mercado específico e sejam bestsellers.
O diretor do Museu de Design de Londres, Deyan Sudjic, disse que os objetos que nos cercam são “consolos às pressões incessantes por conseguir o dinheiro para comprá-los, e que, em nossa busca deles nos infantilizam.” Ou seja, reforça-se novamente a ideia de sustentação do capitalismo que leva as pessoas a comprarem inúmeros objetos, dos mais variados tipos, que dificilmente utilizarão com plenitude. Essa vontade por ter bens e serviços está relacionada com a internalização de hábitos que aparecem desde a infância, na qual já há a intenção de que sejam indivíduos consumidores. E o anseio por utilizar o resultado do consumismo persegue as pessoas como um coelho branco de colete gritando “Está ficando tarde demais!”, utilizando a personagem de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. E afinal o próprio livro é uma crítica à sociedade vitoriana hierarquizada que não controlava os hábitos da sociedade, incluindo as crianças. Logo, Nicolau Sevcenko disse que “o autor de Alice não queria ver a gurizada submetida à disciplina e às rotinas mecânicas surgidas com a industrialização da Inglaterra de sua época”. Desse modo, rejeita-se a fabricação de indivíduos que irão sustentar o modo de vida controlador vigente.
Essa ideia de influência das instituições nos cotidianos também mostra-se em restaurantes, como o Subway, que oferecem certa quantidade de alimentos para serem misturados em uma única refeição. Há o cenário no qual existe um limite de itens a serem consumidos, escolhidos por pessoas que pesquisaram os gostos da população, e a pressão de comer um pouco de tudo ao mesmo tempo. Porém, leva-se em conta que isto não é possível então surge o marketing que atrai as pessoas novamente àquele restaurante. Além disso, também permeia a ideia de comer alimentos saudáveis, sacrificando o prazer de comer algo que goste, mesmo sabendo que os gostos por determinados alimentos são culturais e não naturais. Outro fato importante que merece ser citado são as cadeias de fast food que, novamente, misturam lazer e obrigação. Sendo assim, um ligeiro período de alguns minutos é considerado essencial entre um período e outro de trabalho ou escola. Em suma, é mais um exemplo de uma lógica de poderes que atuam na sociedade contemporânea, objetivando a integração dos indivíduos ao sistema. Neste mesmo nos tempos e espaços de descontração são vigiados e controlados, tanto pelo Estado quantos por empresas, que buscam a mansidão das pessoas e o reforço do cumprimento de regras sociais e profissionais.
Portanto, há uma nítida influência de uma rede de poderes que fabrica uma consciência, coletiva e individual. Dessa forma, a continuação do capitalismo e de sua rede consumista é garantida não apenas pelas grandes agências de publicidade, mas também pelas próprias pessoas que internalizam uma ideologia e a transmitem. Isto é, seja por alienação, por escolha pessoal ou por falta de oportunidade, não muda-se essa estrutura de um modo radical. A causa disso reside justamente na política construída que garante os métodos de dominação articulados ao desenvolvimento das técnicas capitalistas.