“Está ficando tarde demais!”

Atualmente é possível notar constantes disciplina e controle sobre a vida da população que permeiam até o lazer nos ditos tempos livres. Sendo assim, percebe-se que há uma obrigação social de utilizar os descansos (tempo não utilizado no trabalho) para fazer uma lista de coisas determinadas e dentro de tempo e espaço determinados para que sejam, de maneira ilusória, convenientes. Procura-se aqui seguir uma análise foucaultiana que apresenta a atuação de diversos poderes, através das mais simples ou complexas instituições, no cotidiano da atual massa individualizada.

 Primeiramente, é importante compreender o que é “microfísica do poder”, ou seja, uma rede de instituições que exercem diferentes poderes, tais quais o Estado, a família, a escola, a mídia ou a indústria cultural, entre tantas outras. Todos os indivíduos passam a ser moldados por esta rede microfísica de poder e cada um passa a participar de determinadas instituições, sendo praticamente impossível que um indivíduo pertença ao mesmo grupo de instituições que outro. Dada tal condição, a população torna-se heterogênea e para que as ações do Estado atinjam cidadãos tão diferentes uns dos outros se faz necessário encontrar algo que ainda assim seja comum para estes. Este algo consiste na vida, a partir deste ponto o Estado passa a ter por dever a proteção e a garantia da vida da população. A este fato Foucault nomeia por Biopolítica. A prática, tanto da microfísica do poder como da Biopolítica, gera um saber sobre o modo de utilizar o poder. Em outras palavras, o constante exercício do poder serve para aprimorá-lo e permitir sua manutenção.

 Desse modo, é possível entender que ao longo do tempo os indivíduos foram fabricados de modo que crescessem disciplinados e acostumados com a vigilância. Esta pode ser identificada tanta pelas onipresentes câmeras de vídeo (realça-se que sua implementação dentro do Metrô de São Paulo foi aplaudida, mesmo que isso signifique a monitoração dos usuários em qualquer momento), quanto pela indústria cultural, que é apoiada, legitimada e disseminada pela sociedade, que controla cada item de lazer que é acessado pelas pessoas. A fim de ilustrar, pensa-se que mesmo dentro do cinema alternativo há uma tendência a assistir os filmes provenientes do Leste Europeu em detrimento à produção sul-americana que não é vendida dentro do Brasil, por coincidência também um país da América do Sul.

 Dessa forma, tendo em vista que os poderes institucionais marcam o cotidiano da sociedade, entende-se que os indivíduos passam a ter suas vontades, pouco a pouco, eliminadas por um forte poder disciplinar. É dessa forma, que as pessoas percebem que não sofrem coerção, já que não há mais vontades a serem coagidas. Isso, segundo Foucault, é uma realidade que garante o funcionamento do capitalismo. Explica-se que a evolução das formas de dominação é a evolução do capitalismo. Uma ideia sobretudo marcante é que tal dominação não é exercida apenas pela força física, mas também pela propaganda que estuda as relações entre indivíduos e utiliza as informações resultantes a serviço das elites estabelecidas no poder. Tem-se como exemplo, a expressão de “Revolução de 1964”, utilizada pela grande mídia para passar a impressão de que a ditadura militar foi uma alteração das relações político-econômicas, essencial para a posterior democratização do país. Este é outro termo que, por vezes, parece exagerar de forma otimista a situação política brasileira.

 Portanto, pode-se entender que há um constante exercício dos poderes em todas as esferas da sociedade. Isso, segundo Foucault, serve para sustentar a organização capitalista, já que se estimula a docilização dos indivíduos e consumo dos produtos produzidos por eles. Isto pode ser exemplificado por uma frase do cantor Tom Zé que diz que os indivíduos urbanos, contemporâneos e ocidentais são “nascidos em loja.” Estes são ensinados, desde pequenos, a verem o Estado e o sistema capitalista através de uma perspectiva favorável. Além disso, há congratulações aos que seguem um caminho educacional e profissional que atenda às perspectivas do mercado. É com isso em vista que se industrializou o sistema educacional com cursos de tecnólogo e graduações em menor tempo, para que maior parte da população tivesse oportunidades de servir às empresas que requisitavam mão-de-obra com certo nível acadêmico.

 Logo, a influência no cotidiano da população é tão marcante que se confunde horário de lazer com horário de obrigação. Daí a idéia de cursar idiomas estrangeiros em finais de semana e de comprar livros ou filmes para serem assistidos nas férias. Neste curto período, teoricamente dedicado totalmente ao lazer, há uma sensação compulsiva sobre o dever de assistir ou ler cada coisa que comprou, já que não há tempo para isso durante o ano laboral. Há uma curiosa relação entre oferta e demanda tanto de obrigações quanto de diversões que levam a um difuso limite entre lazer e trabalho. Tal lógica construída em um processo de internalização das normas de diversas instituições é feita com constantes pesquisas de marketing que criam um banco de dados sobre os gostos da maioria. É uma cultura dos sentidos que visa à produção em massa para vendas nos grandes centros urbanos. A fim de ilustrar, pensa-se nas capas de livros que variam de país para país, de modo que atraiam um mercado específico e sejam bestsellers.

 O diretor do Museu de Design de Londres, Deyan Sudjic, disse que os objetos que nos cercam são “consolos às pressões incessantes por conseguir o dinheiro para comprá-los, e que, em nossa busca deles nos infantilizam.” Ou seja, reforça-se novamente a ideia de sustentação do capitalismo que leva as pessoas a comprarem inúmeros objetos, dos mais variados tipos, que dificilmente utilizarão com plenitude. Essa vontade por ter bens e serviços está relacionada com a internalização de hábitos que aparecem desde a infância, na qual já há a intenção de que sejam indivíduos consumidores.  E o anseio por utilizar o resultado do consumismo persegue as pessoas como um coelho branco de colete gritando “Está ficando tarde demais!”, utilizando a personagem de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. E afinal o próprio livro é uma crítica à sociedade vitoriana hierarquizada que não controlava os hábitos da sociedade, incluindo as crianças. Logo, Nicolau Sevcenko disse que “o autor de Alice não queria ver a gurizada submetida à disciplina e às rotinas mecânicas surgidas com a industrialização da Inglaterra de sua época”. Desse modo, rejeita-se a fabricação de indivíduos que irão sustentar o modo de vida controlador vigente.

 Essa ideia de influência das instituições nos cotidianos também mostra-se em restaurantes, como o Subway, que oferecem certa quantidade de alimentos para serem misturados em uma única refeição. Há o cenário no qual existe um limite de itens a serem consumidos, escolhidos por pessoas que pesquisaram os gostos da população, e a pressão de comer um pouco de tudo ao mesmo tempo. Porém, leva-se em conta que isto não é possível então surge o marketing que atrai as pessoas novamente àquele restaurante. Além disso, também permeia a ideia de comer alimentos saudáveis, sacrificando o prazer de comer algo que goste, mesmo sabendo que os gostos por determinados alimentos são culturais e não naturais. Outro fato importante que merece ser citado são as cadeias de fast food que, novamente, misturam lazer e obrigação. Sendo assim, um ligeiro período de alguns minutos é considerado essencial entre um período e outro de trabalho ou escola. Em suma, é mais um exemplo de uma lógica de poderes que atuam na sociedade contemporânea, objetivando a integração dos indivíduos ao sistema. Neste mesmo nos tempos e espaços de descontração são vigiados e controlados, tanto pelo Estado quantos por empresas, que buscam a mansidão das pessoas e o reforço do cumprimento de regras sociais e profissionais.

 Portanto, há uma nítida influência de uma rede de poderes que fabrica uma consciência, coletiva e individual. Dessa forma, a continuação do capitalismo e de sua rede consumista é garantida não apenas pelas grandes agências de publicidade, mas também pelas próprias pessoas que internalizam uma ideologia e a transmitem. Isto é, seja por alienação, por escolha pessoal ou por falta de oportunidade, não muda-se essa estrutura de um modo radical. A causa disso reside justamente na política construída que garante os métodos de dominação articulados ao desenvolvimento das técnicas capitalistas.

Exploração do homem – análise marxista

A tese do materialismo histórico, defendida por Marx, diz que a evolução histórica se dá pelos confrontos entre diferentes classes sociais decorrentes da “exploração do homem pelo homem”. A teoria serve também como forma essencial para explicar as relações entre sujeitos. Assim, como em exemplos apontados por Marx, temos durante o feudalismo os servos que teriam sido oprimidos pelos senhores, enquanto que no capitalismo há a classe operária pela burguesia. As relações entre homens são caracterizadas historicamente por relações de oposição, antagonismo, exploração e complementaridade entre classes. A fim de ilustrar, lembra-se da frase de abertura do Manifesto (1848): “A história de toda a sociedade até hoje tem sido a história das lutas de classes.” Ou seja, seguindo as ideias marxianas, há muito tempo existe uma contínua exploração de uma minoria, estabelecida no poder, sobre a maioria dos trabalhadores, desde a antiga oposição entre patrícios e  plebeus, passando pela Idade Média com a servidão e a revolução industrial em meados do século XVIII.

O sistema capitalista inseriu, a partir da abundância de mão-de-obra, a característica de efemeridade, isto é, aumentar a exploração do trabalho cada vez mais, e isso se acentua até a contemporaneidade. Com todo o desenvolvimento da indústria moderna, a propensão de inclinar a balança a favor do capitalista e contra o trabalhador, resultando na tendência geral da produção capitalista que não é a de elevar o nível médio dos salários, mas sim de reduzir ou de pressioná-lo ao valor do trabalho até o seu limite mínimo. Um dos exemplos históricos que temos acerca do assunto, é a Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII na Inglaterra. Nesse contexto, o proletariado era obrigado a trabalhar até 20 horas por dia em condições insalubres que não priorizavam, em nenhum momento, a dignidade dos trabalhadores, como citado por Marx em O capital: “Como o enriquecimento dos fabricantes aumentou com a exploração mais intensiva da força de trabalho já é demonstrado pela circunstância de que o crescimento médio das fábricas inglesas de algodão(…).”

Para Marx, as desigualdades sociais observadas no seu tempo eram provocadas pelas relações de produção do sistema capitalista, que divide os homens em proprietários e não-proprietários dos meios de produção.O trabalhador é pago pela sua força de trabalho, através de um salário cujo valor tende a ser de mera sobrevivência, ou seja, que lhe permite tão somente repor ou reproduzir sua força de trabalho. E o que o trabalhador produz, vale mais do que recebe em salário. Esse “mais” é apropriado pelo dono dos meios de produção, o que se chama muitas vezes apropriação do excedente de trabalho. De acordo com Marx, as condições específicas de trabalho geradas pela industrialização tendem a promover a consciência de que há interesses comuns para o conjunto da classe trabalhadora e, conseqüentemente, tendem a impulsionar sua organização política para a ação. A classe trabalhadora, portanto, vivendo uma mesma situação de classe explorada e sofrendo progressivo empobrecimento em razão das formas cada vez mais eficientes de exploração do trabalhador, acaba por se organizar politicamente. Essa organização é que permite a tomada de consciência da classe operária e sua mobilização para a ação política, descrito por ele no livro Manifesto do Partido Comunista, e que culminou na célebre frase “Proletários de todos os países, uni-vos!”

Foi pensada, por Marx, a renúncia à resistência contra a violência do capital, mas a classe trabalhadora se transformou em uma massa uniforme sendo explorados como escravos. Como, por exemplo, no Brasil em que a escravidão foi abolida há 123 anos e a exploração de escravos ainda existe, e por volta de 1850, nas plantações do Sul dos atuais EUA, um escravo custava em média o equivalente a 40 mil euros; hoje, em contrapartida, a sua cotação no mercado mundial ronda os 90 euros. Um outro fato que exemplifica que a exploração é que em 1948 a Carta Internacional dos Direitos do Homem consagrou a escravidão como um atentado à dignidade do ser humano, só que em 2004, calcula-se a existência de  27 milhões de escravos por todo o mundo que contribuem com o processo de retirar o máximo de proveito do trabalho.

Segundo Marx, o período de intensificação da violência do capital contra os trabalhadores devido a uma série de fatores como a “pacificação” funcionários, o mal uso do poder dos sindicatos e abundância da mão- de –obra, o excesso de pessoas acaba criando uma carta branca para que os donos sucateiem os direitos dos trabalhadores com a concessão dos operários, e os sindicatos agem como remédios sintomáticos, apenas lutando contra os sintomas porém mantendo o alicerce intacto. É como se todas as ideologias, ações dos sindicatos, propostas e discursos políticos fossem para legitimar a exploração dos proletários feitas pelos donos dos meios de produção. Essas instituições, na teoria, são feitas para melhorar a vida do trabalhador, porém, na prática, justificam a extração do máximo da força de trabalho e a manutenção da exploração do homem pelo homem.

Paralelamente ao trabalho escravo, há um contínuo desenvolvimento dos meios de produção que permite a exploração dos trabalhadores rurais e urbanos, assalariados. Tais recebem por uma pequena parte do que produzem, já que a grande carga horária serve para atender aos interesses de lucro dos grandes conglomerados capitalistas. Em outras palavras, o progresso científico foi – e ainda é – utilizado pelas elites para aumentar o cumprimento de sobretrabalho da sociedade, baseando-se numa ideologia manipuladora. Desse modo, aumenta-se os lucros das empresas e dos bancos internacionais, sem valorizar o trabalho das pessoas que são forçadas a aumentarem sua produtividade sem aumentar seus salários, gerando um tipo de trabalho que garante a perpetuação das injustiças sociais do sistema.

“A direção do capitalista não é só uma função específica surgida da natureza do processo social de trabalho e pertencente a ele, ela é ao mesmo tempo uma função de exploração de um processo social de trabalho e, portanto, condicionada pelo inevitável antagonismo entre o explorador e a matéria-prima de sua exploração.” K. Marx- O capital.

Servidão Voluntária

                Ao olharmos para a história da humanidade nos deparamos com diversas formas de governo. Independentemente de quais formas sejam estas quando nos focamos não só nos governantes, mas também nos governados, encontramos em suas vidas uma ausência de liberdade natural além de podermos identificar aquilo que Étienne de La Boétie chamou por servidão voluntária, isto é, o hábito de aceitar voluntariamente a condição presente, independente do quão sofrível seja. Recorrendo à sua obra “Discurso da Servidão Voluntária” e à obra de Rousseau “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” podemos compreender no que consiste a servidão voluntária, suas causas e consequências, de que forma a liberdade natural dos homens foi perdida e como por um fim a ela, recorrendo à liberdade civil.

            Um motivo que La Boétie elenca para justificar a existência da servidão é a proteção. Os habitantes de um país podem encontrar um governante que garanta protegê-los, provando ter audácia, providência e prudência para tanto. Outra razão, não menos importante, que o autor destaca é o uso da força por parte do tirano. Uma população pode submeter-se à servidão pela força e ameaçada pelas armas passa a servir suportando seu destino já que não é forte o suficiente para enfrentá-lo. Qualquer que seja o motivo, em ambos os casos, a população é oprimida por quem a governa e por isso era de se esperar que essa aguardasse por um futuro melhor caso submetida pela força, ou caso aceitasse ser governada por este, que tantos bens a traz, não aceitasse a servidão. Entretanto, nada disso acontece. Vemos centenas de países onde seus habitantes vivem privados de liberdade e aceitam a servidão sem nada fazer para mudar a situação em que se encontram. Aceitam a servidão por que rejeitam sua liberdade. Desse mesmo modo, uma grande parte da população estadunidense aceitou renunciar à sua liberdade em troca de uma ostensiva segurança contra os terroristas que ameaçavam a institucionalização do Estado. Ainda seguindo as ideias de La Boétie, a liberdade é um “bem tão grande e tão doce” e uma vez perdida surge lugar para servidão. Mas para ser livre basta querer, qualquer homem que não seja covarde pode ir atrás de realizar seu desejo inerente de possuir liberdade. Sendo assim, por que os homens submetem-se à servidão?

             La Boétie e Rousseau nos respondem: pelo hábito. O primeiro mostra que nenhum homem pode viver servindo sem que seja gravemente prejudicado, sem que sofra danos em sua essência, por isso conclui que ser e desejar ser livre são características inerentes ao ser humano. Mas, embora a natureza humana seja baseada na posse de liberdade, ela é esquecida se não colocada em prática, enquanto o hábito nos molda à sua maneira, fazendo com que nos acostumemos a agir conforme nos foi ensinado, pois é capaz de fazer o homem esquecer a sua primeira condição, que é a de ser livre. Assim os primeiros passam a servir, ou pela força ou por proteção, e se acostumam de forma que os próximos, nunca tendo provado do que é ser livre, habituam-se a servir constituindo- se, dessa forma, a servidão voluntária.

            As ideias de La Boétie nos levam às de Rousseau. Este, como já dito, também considera o hábito a causa da servidão voluntária, além de concordar com a importância da liberdade. Segundo o filósofo iluminista, é a consciência de liberdade que os homens possuem que os diferem dos animais. Nessa sua originalidade os homens passaram a viver coletivamente e isso nada lhes foi prejudicial, pelo contrário. Mas a sociedade constituiu-se de tal forma que a liberdade natural foi totalmente destruída e constituiu-se a propriedade privada. Sua constituição dividiu os homens entre aqueles que eram proprietários e os que não possuíam propriedade sendo que estes para sobreviver tiveram que se sujeitar à servidão. Nesse ponto sua ideia se complementa à de La Boétie, que mostra um tirano submetendo seu povo à servidão, pois o governo serve para legitimar a propriedade privada e consequentemente a desigualdade e a servidão voluntária. Por hábito o povo não se rebela contra os latifundiários nem contra esse governo que politicamente valida a desigualdade, é ele que faz a desigualdade política aparentar ser natural. Entre os homens já existe uma desigualdade natural e está é aumentada pela desigualdade de instituição, pois se adquire o hábito de comparar e de atribuir preferências ao mérito e à beleza. Ou seja, entre os homens já existem diferenças naturais e estas são aumentadas pelo hábito de aceitar as desigualdades adquiridas na sociedade. É também o hábito o responsável por tornar as antigas leis “santas e veneráveis”. De posse da ideia dos dois autores vemos que a liberdade, bem mais precioso que a natureza humana possui, é usurpada de cada indivíduo no processo de constituição da sociedade, de legitimação da propriedade privada e de submissão aos governos e praticamente não se vê resistência a esse processo porque a população está habituada a viver dessa forma.

            Faz-se necessário frisar que Rousseau vê que a liberdade natural foi corrompida de forma irremediável. Visto tal dano e o hábito que se tem em aceita-lo podemos nos perguntar se há uma solução para tais problemas. La Boétie diz que os métodos que os tiranos utilizam para manter a população cada vez mais acostumada à servidão voluntária só são eficazes na parcela “ignorante e grosseira” do povo. Sendo assim quanto maior for a parcela “ignorante e grosseira” de uma população mais fácil é submetê-la a servidão e fazer com que esta sequer pense em contestar. A solução para extinguir a servidão voluntária, que está nas entrelinhas do texto do autor, fica mais clara em Rousseau. Esta solução se resume em só uma palavra: educação. O temperamento, a força, ou seja, a capacidade de contestar provem mais da educação dada do que da personalidade dos indivíduos. Aqueles que são educados e que conhecem as artes e a ciência se diferenciam dos que não são, pois são capacitados de enxergar que a servidão não deve ser aceita e a educação lhes dá a capacidade de contestar, de agir e consequentemente conseguir extinguir a servidão voluntária e a propriedade privada.

            Para tanto a educação não pode ser feita de qualquer forma, em sua obra Emílio Rousseau trata especificamente deste tema, mas por ora basta saber que para ele a educação deve ser no ritmo das crianças onde elas possam sentir a necessidade de aprender, para que de fato aprendam e que se possa se constituir um debate de igual pra igual em relação ao governo, de forma que a educação sirva para complementar o projeto político que Rousseau tem em mente. Ou seja, indivíduos educados devem conseguir instituir uma liberdade civil (já que a natural foi destruída) e um governo onde o povo seja soberano e a vontade geral prevaleça, pois a população tem capacidade de vigiar seus governantes. Uma educação falha como a que se tem atualmente no Brasil pode desencadear na redução considerável no número de movimentos estudantis. Esses movimentos já tiveram notável importância, mas a deficiência da educação, unida à herança da ditadura militar e ao sucesso econômico brasileiro, fizeram com que os estudantes, de forma geral, se habituassem ao governo e ao espírito individualista e pequeno-burguês, sem ver e não vissem a necessidade de unir-se em grande número para protestar. Vale lembrar que, para Rousseau, a vontade geral não é sinônimo de vontade da maioria, mas sim uma opinião (partilhada por muitos ou por poucos) que levará a um bem coletivo. Ou seja, uma fatia social esclarecida e bem-educada poderia de facto visualizar, racionalmente, o melhor para a comunidade que a cerca. Daí a necessidade de uma formação crítica para os estudantes, universitários ou não, para que busquem aliar seus conhecimentos técnicos à militância em busca de um cenário em que possam viver segundo os princípios da liberdade civil.

            Sendo assim, vemos claramente que, seja primeiro pela força ou por proteção, há muitos séculos os primeiros homens abriram mão de sua liberdade e por hábito as futuras gerações deixaram de conhecê-la e consequentemente passaram a servir de forma voluntária, por nunca terem conhecido outra maneira de viver e a educação de tão falha se fez incapaz de levar os homens à busca por mudanças. Como nos resume Manuel J. Gomes, tradutor da obra de La Boétie para o português: “Hoje, como nos tempos de La Boétie e Montaigne a alienação é demasiado doce e a liberdade demasiado amarga, pois está demasiado próxima da solidão. E da loucura”.

O Virtuoso Pinochet

De 1970 a 1973, Salvador Allende foi presidente do Chile, era um socialista que pretendia levar reformas políticas esquerdistas ao país. Nesse contexto, Allende era mais amado  do que temido pelo povo – seu único apoio, já que o exército e as elites o isolaram. No cenário da Guerra Fria, os EUA também isolaram o Chile e decidiram apoiar Augusto Pinochet (comandante das Forças Armadas) em um golpe militar.

No dia 11 de setembro de 1973, aviões militares atingiram o palácio La Moneda, em Santiago de Chile. Neste momento, segundo a versão oficial, o presidente Salvador Allende depois de três anos no poder suicidou-se. Ele perdeu o cargo para Augusto Pinochet em um golpe rápido e violento. Este teve virtù , isto é, soube alcançar seu objetivo pois o contexto da Guerra Fria e de outras ditaduras militares na América Latina contribuíram para a manutenção da ordem pinochetista por 17 anos.

Pensa-se que o primeiro erro do presidente deposto a ser considerado é o fato de Allende ter sido muito amado pela sociedade, todavia não carregava a qualidade de ser temido, pensando segundo a ideologia do cientista político Maquiavel. Dentro de tal contexto, Allende procurou ser bom em diversos pontos de seu governo, ou seja, abriu a possibilidade de fracassar. Sendo assim,  não se fez temer já que as Forças Armadas não foram fiéis ao soberano. Lembra-se de uma passagem de O príncipe, de Maquiavel: “…quando o príncipe está com seus exércitos e tem sob seu comando multidões de soldado, não deve importar-se absolutamente com a fama cruel, pois sem ela não se mantém um exército unido nem disposto ao combate.” Por outro lado, Pinochet soube muito bem utilizar o seu exército.  Apesar de tudo, Allende acertou em não ser odiado, o que levaria a uma constante ameaça ao exercício de poder e poderia levar a uma crise antes do golpe de 73.

O general Augusto Pinochet soube alcançar o fim da Política – segundo o filósofo italiano – conseguiu garantir a ordem e a soberania dentro do seu território e sobre o povo a qualquer custo. Em outras palavras, soube usar o mal para governar um país que estava, de certo ponto de vista, desestabilizado. Além de governar com mãos de ferro, procurou eliminar todas as formas de oposição que surgiram com o uso de prisões, torturas e assassinatos, tornando o Chile como palco da ditadura mais cruel da América. No capitulo VI de O príncipe há uma justificativa para tais ações: “… não há coisa mais difícil de se fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou mais perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem, porque quem o é tem pôr inimigos todos aqueles que se beneficiam com a antiga ordem…”. A fim de exemplificar, em alguns meses de governo haviam quase 20.000 assassinados e 30.000 prisioneiros políticos submetidos a torturas. Um dos aspectos que legitimou essas mortes foi a Constituição de 1980 que diz que a autoridade do presidente abarca tudo que diz respeito à manutenção da ordem, que seria o bem maior da sociedade (Su autoridad se extiende a todo cuanto tiene por objeto la conservación del orden público en el interior y la seguridad externa de la República, de acuerdo con la Constitución y las leyes. Artigo 24 da Constituição da República do Chile, 1980)

Também, o governo ditatorial de Pinochet foi marcado por ter concedido uma ilusão de liberdade ao povo. Isso aconteceu por causa dos plebiscitos que o elegiam presidente. Em seu governo ocorreram dois, um em 1978 e outro em 1980. O de 78 o legitimou presidente e o de 80 foi uma fraude, apenas para prolongar a sua ditadura pessoal. Contudo, o caráter repressivo do Estado determinava a continuidade do regime militar e de toda a instituição que o cercava. Desse modo, a sociedade chilena pensava que podia derrotar politicamente a ditadura. Utilizando uma análise maquiavélica, acredita-se que é essencial garantir um mínimo de liberdade aos súditos e deve-se impor limites para assegurar a ordem por parte do soberano. Apesar de tudo, em 1988, pressionado pela comunidade internacional, o plebiscito derrotou Pinochet, dentro das normas constitucionais. Sendo assim, o povo foi capaz de interditar a ditadura  e desencadeou um processo de transição à democracia, através de reformas políticas que culminaram em 1990 com a posse do presidente democrático Patricio Aylwin.

Entende-se que o ditador justificou o golpe e sua permanência no poder, por meio do chamado “Milagre chileno”. Período no qual o Chile pôde desenvolver-se e recuperar-se de uma crise econômica, ocasionada pela evasão de investimentos externos. Além dos aspectos de limitação da vontade popular, a manutenção das Forças Armadas como poder acima do civil, violação de direitos humanos que também favoreceram a continuidade do governo ditatorial. Paralelamente, analisa-se que o bloco oposicionista aceitou formar uma coalizão de partidos, o que tornou-o um conjunto forte na luta contra o governo pinochetista. Por fim, lembra-se que, para Maquiavel, um soberano não é obrigado a seguir as coisas que um homem bom seguiria e para conservar o seu Estado pode agir contra a caridade, a fé, a humildade e a religião, entre outras características descritas pelo cientista político.

“Eu tenho a cara azeda, por isso talvez digam que eu sou um ditador.”

“Se eu tivesse sido ditador, ainda estaria governando.”

Frases de Augusto Pinochet

Para a política o bem comum é a ordem?


Sim e não. Sim, para as teorias tradicionais (sobretudo Aristóteles), em que o bem é o qual todos compartilham, ou seja, a convivência ordenada. As ações políticas são aquelas consideradas prioritárias para o grupo, por exemplo, em tempos de guerra o fim da política é estabelecer a ordem, enquanto que naqueles de paz se busca o bem estar. Nesta teoria tradicional a ordem seria um equivalente à justiça.

Por outro lado, a relação entre bem comum e ordem não é clara na teoria política moderna. A política não tem fins totalmente definidos, estes dependem do grupo, do tempo e das circunstâncias. A ordem é alcançada como um resultado de organização de poder, se essa estiver nas metas do grupo que detém este poder. De qualquer maneira uma única ordem não representa o bem para todas as pessoas, sempre haverá concessões e deveres (obrigações) da parte dos indivíduos para que tal ordem seja estabelecida.

“Pra política, o bem comum é a ordem?”

Na política, a palavra “ordem” demanda muitos significados, entretanto todos convergem para o mesmo consenso de que a ordem, no sua acepção mais bruta, é necessária para o governo de qualquer Estado, desde uma ditadura à uma democracia. No entanto, a ordem pode ser interpretada de várias maneiras, por exemplo, nos remanescentes países comunistas, a ordem é mantida reprimindo a população, nas democracias pode-se alcançar a ordem estimulando a educação. Porém, como todos os Estados são governado por seres humanos, ou seja volúveis, a ordem pode não ser usada para um bem comum, e se tornar uma beneficiária de poucos, na maioria das vezes dos que estão no poder, desse modo ela passa a atender às necessidades de uma elite, enquanto o resto da população só conhece o significado de ordem quando esta é usada como um meio de opressão. Portanto, em um regime totalitário, não se pode dizer que o bem comum é  a ordem, pois a mesma não está agindo a favor de seus cidadãos, e sim contra eles.

 

Por Hortencia Botelho