quarta-feira, 13 de julho de 2022

Intervalo que tudo arrasta

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.

Bertolt Brecht.



Uma foto no intervalo do almoço
Dois pés descalços estirados na rede
Três passarinhos conversando ouriçados
Os ponteiros empurrando o passado arrastados

Seria um recorte de tempos amenos
Não fosse um ano de homens pequenos
E estivéssemos tão perto do fundo do poço

Onde embalam ventos de secura e calor
Só sopra cansaço
Falta ar
- e como faz falta um respiro profundo -

Porém, nessa rede em que faz-se um descanso
Na parede que improvisa um balanço
No futuro onde a gente se lança
Que deságua e se faz correnteza em ribança
Essa gente que gesta com coragem e leveza cada passo de luta e de dança
Sinto aquilo que chamam esperança 

- ah... Veja como faz bem um respiro profundo -

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Felicidade: substantivo feminino

@ladrilha

Uma atitude política
Uma bicha perigosa
Uma empreitada alvissareira
Uma promessa
Uma bandeira
Uma trincheira
Uma revanche

Uma avalanche que faz das pedras atravancadas uma montanha de sonhos

Não é caminho.
É caminhada - no feminino - que somos.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Canto das cigarras

Porque as cigarras cantam
Sei que já vem chuva
E a julgar pelas densas nuvens
Dessa vez vai despencar é um toró de grandes proporções
Graças a Deus a natureza dá seu jeito de se afirmar no absurdo
Não se estaciona nunca nas inevitáveis estações

As cigarras quando cantam estridentes
É como se dessem uma chance
Pra gente prestar atenção
Nos simples agudos
Nos graves metálicos
Aguçar os ouvidos
- surdos -
E até quem insiste só em sis
Reparar lá nos sustenidos
Se preparar pro ré anunciado
Pois fá mintos se amontoam
Sob sóis acovardados
Tidos por mis
(hoje seriam mimimis?)
Tudo é mesmo de dar dó...

Como as cigarras são seres
Cascudos de aspecto asqueroso
Se reproduzem rápido e sem controle
Fazem barulho
E além de tudo ainda voam
Às vezes dá medo
Mas é só não ficarmos sós
Elas vivem pouco.

Então quando bater o desencanto
- Ou o grito das cigarras
Se misturar em prantos -
Resta pensar que a natureza dá seu jeito.

Se parecer muito abstrato esse conceito
Eis um exemplo da experiência corriqueira:
Sempre que se anuncia a estiagem
Perceba que logo logo na paisagem
A florada dos ipês nos presenteia!

Todos juntos
Coletivos
Soberanos
Erguem-se intransigentes
Restaurando o colorido
Nos canteiros centrais
Do canteiro central
Do país

Pura teimosia
Ou será
E s p e r a n ç a

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Correria

Corro enquanto passam
A semana o mês o ano
Passam horas
Passam vidas
Passam planos

Escorrem forasteiros
Realmente passageiros
Quantos sonhos
Fantasias
Transcorrem pelos dias
Corriqueiras
Agonias
Pelos anos que percorro
Cordilheiras
Utopias

Corro tanto tanto tanto
E nessa minha correria
Só corro
Um dia morro

Calma ria

Corro tanto
Porém canto todo dia 

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Confissão de culpa



o ano era dois mil e dezessete

e dizia que fazia poemas
como quem confessava um crime

foragida,
rimava às escuras

só com tinta
a pena lhe era
mais tênue

[*Sobre a imagem: Foto de autor desconhecido - O poema é de Mario Benedetti]