Solidão e isolamento

«O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos contactos sociais. Isolamento e solidão não são a mesma coisa. Posso estar isolado — isto é, numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo — sem que esteja solitário; e posso estar solitário — isto é, numa situação em que, como pessoa, me sinto completamente abandonado por toda a companhia humana — sem estar isolado. (…)

No isolamento, o homem permanece em contacto com o mundo como obra humana; somente quando se destrói a forma mais elementar de criatividade humana, que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo ao redor, o isolamento se torna inteiramente insuportável. Isso pode acontecer num mundo cujos principais valores são ditados pelo trabalho, isto é, onde todas as actividades humanas se resumem a trabalhar. Nessas condições, a única coisa que sobrevive é o mero esforço do trabalho, que é o esforço de se manter vivo, e desaparece a relação com o mundo como criação do homem. (…)

Solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas. À parte algumas observações ocasionais — geralmente de espírito paradoxal como a afirmação de Catão (relatada por Cícero, “De re publica”, I, 17): “numquam minus solum esse quam cum solus esset”, “nunca ele esteve menos só do que quando estava sozinho”, ou, antes, “nunca ele esteve menos solitário do que quando estava a sós” — parece que foi Epicteto, o filósofo escravo-forro de origem grega, o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia. De certa forma, a sua descoberta foi acidental, uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra, mas o ser só (“monos”) no sentido de ser absolutamente independente. Na opinião de Epicteto (“Dissertationes”, livro 3, capítulo 12), o homem solitário (“éremos”) vê-se rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contacto e a cuja hostilidade está exposto. (…)»

ARENDT, Hannah. “O Sistema Totalitário”. P. 588-590.

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